terça-feira, 19 de julho de 2011

Para lelas e verticais

As linhas na pele denunciavam a idade avançada. Vestes negras. Emudecida fala; tinha uma garotinha encostada ao peito, contando uma a uma as batidas do velho coração, acariciava-lhe os cabelos ralos e finos, desfiava-os, como areia a escorrer entre os dedos.
De repente um grito, louças se estilhaçando na cozinha, soluços e lágrimas.
A minha vida não é uma história propriamente dita, são recortes imaginários, são retas que ora se cruzam, ora não se tocam jamais, sendo inúteis aí as inúmeras afinidades; não quero com isso propor a tese de que os opostos se atraem como inclusive a física poderia sugerir, quero, porém, dizer com isso que a vida é construída a partir de retas paralelas e verticais e das várias ‘’combinações’’ existentes entre elas.
- Bom dia!Por favor, eu poderia falar com a senhora Manoella?
- Diga sou eu mesma.
- Bem senhora desculpe o incomodo, mas acho que é algo de seu interesse...
Ouve o clique do telefone sendo desligado do outro lado da linha.
O que haveria de ser?O que poderia ser de seu interesse?
O telefone toca novamente.
-Bom dia!Falo novamente com a senhora Manoella?
-Certamente.
- Aqui é do hospital onde sua avó está internada..
-Desculpe, só pode haver algum engano não tenho nenhuma avó internada.
-A senhora chama-se Manoella Freitas?
-Sim sou eu mesma.
-Então estou falando com a pessoa certa!
-Minha filha  você só pode está se referindo a algum homônimo meu.
-Ho o que senhora?                                    
-Você pode passar o endereço do hospital?
-Sabia que ia se interessar!
-Não se trata propriamente de interesse, mas de corrigir um engano, um mal entendido.
- Confesse a senhora ficou intrigada não ficou?
-Você poderia se ater  somente ao seu lado profissional e deixar suas curiosidades de lado?
Riscou o endereço várias vezes com os olhos,ousou apagá-lo,contudo seria capaz de fazer o percurso de olhos fechados.
A telefonista estava certa era um assunto de seu interesse.
-A senhora ta vendo aquele corredor?Siga em frente, depois da bifurcação dobre a esquerda quarto 307.
Todo o corpo vacilava diante da situação. Meu Deus!Havia um homem guardando a porta, identificou-se e ouviu:
-Ela está esperando por você!Esperou por esse dia durante... Durante... Desculpe é melhor a senhora entrar.
O estilhaçar da louça, gritos, intensa correria, soluços e lágrimas.
Abraçou-a amorosamente como se estivesse abraçando a sua própria vida, ou o seu momento final. Olhou-a nos olhos gastos, beijou-lhe as faces descoradas.
-Minha filha!Que bom que veio... Sabia que viria!
-Não diga nada, por favor, perdoe-me... Simplesmente me deixa te abraçar, ouvir o teu coração.Eu te amo tanto, esperei tanto pra te dizer isso e naquele tempo eu... Eu nem conseguia falar...
-Segure a minha mão, por favor!Eu precisava tanto de você, tanto... Aperta minha mão pra que eu possa ir...
Lela apertou-lhe as mãos que estavam ficando cada vez mais frias, olhou-a nos olhos, foi a última vez que vira aqueles olhos.
De repente gritos, correria intensa pelo hospital, mal conseguia suster-se de pé.
-Calma senhora sente aqui. Ela só chamava por você, era de sua presença que precisava pra partir, me disse isso, e disse também o quanto a amava.
  -Eu jamais havia visto aquela senhora antes.
Tomou as velhas mãos entre as suas e contou do telefonema recebido pela manhã.
-Não sei se me entende, mas foi a mesma dor, talvez até pior, agora ela estava misturada a sentimentos amargos e dores que não sentia quando criança.
  

7 comentários:

  1. Legal!!! Pensei q nao ia conseguir sair do comecinho, mas o texto é bom, me entreteu e acabei lendo tudinho. Já estou curioso pra saber o restante da história. Será q Lela tem amnésia? Ou é aquela senhora q é doida mesmo? Quero o texto todo pra ler, viu, Ceci?!!!

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  2. Leia de preferência após o texto acima.(Contém partes da sinopse)

    Lela não tem problemas de amnésia...Pra todos que vem perguntando sobre esse conto lá vai uma explicação:a personagem principal sofre uma perda familiar no inicio da história e o que ocorre depois são uma série de coincidências que fazem com que ela de certa forma se reencontre com o seu passado através da senhora mencionada no texto.É uma forma de fazer as pazes com as lembranças,com a culpa e frustração de não ter conseguido despedir-se da avó da forma que gostaria.

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  3. Vidas que se cruzam, vidas que se afastam...
    Assim são nossas histórias...
    Parabéns!

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  4. Pelo menos as indagações e lições que tiro é: quais variáveis medem a velocidade, intensidade e o valor da vida em função do tempo. E de que tempo falamos?

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  5. O tempo não é mais o do relógio mecânico do homem, mas, sim, daquele que aferido "como areia a escorrer entre os dedos", no qual, a frequência é de "uma a uma as batidas do velho coração". Logo, parece que cada segundo é precioso, sendo a sua sucessão paralela à consecução dos momentos que valorizamos.
    Aliás, "idade avançada", "garotinha", "velho coração", "cabelos ralos e finos" - ao que me parece, idosos e crianças têm essa característica se comparados com outras fases de vida - são alguns pontos que me chamaram atenção, em um mesmo momento encontro de 'gerações'. Princípio e fim são suferidos um só? (até eu espero comentário seu, Ceci)
    "A minha vida não é uma história propriamente dita, são recortes imaginários". Parece que o ciclo de vida dela agora se encontra diante não só do vivido, mas, também, do idealizado, o que também nos reporta ao não vivido ou ao que se esperaria por viver.
    Excelente! esse foi o meu favorito! claro que os outros também estão excelentes.

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  6. Ceci, a cada conjunto de frases que você coloca, minha cabeça arranja uma cena; cada descrição que você faz e no encadeamento de fatos, me leva a fugir do óbvio, da linearidade - o começo(1° parágrafo) parece dar um giro no ciclo de vida da moça em questão.

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  7. Vamos a resposta rs

    Estava conversando com meu amigo Zé Mário e de repente ele me propôs que fizesse um conto com o título Para lelas e verticais,foi quando perguntei:"desse jeito mesmo que tá escrito?",ele confirmou...Então veio minha parte,eu deveria pensar sobre o assunto e escrever..Sinceramente acho que foi muito inventivo, quiçá genial da parte dele,portanto aí vão os créditos e agradecimentos a esse grande amigo que sempre me apoia e incentiva.

    Logo após isso me pus a pensar sobre o tema que nos leva a duas conclusões:

    1ºPara lelas(nos induz a pensar numa pessoa) e verticais(nos induz a pensar noutra pessoa).(vide o nome da minha personagem que é ao mesmo tempo uma referência ao título,já que podemos chamar a Manoella de Lela,como também uma forma de homenagear uma amiga de infãncia que tem esse nome e apelido.

    2ºO título nos leva a própria geometria da coisa...Pense nas retas,pensou?As parelas e verticais só se encontram em dois pontos(exceto o caso das parelas e verticais serem uma coisa só geometricamente falando),que podem ser simbolizados como o inicio e o fim da vida.

    Espero ter respondido.Beijos.

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