sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Ao Mestre

-Passa a cola.
-Aqui.Colocou na mesinha.
-Está quase pronto;acho que ficará bonito; e você o que me diz?
-Não entendo de arte sou somente um ajudante.
-Ajudante não;aprendiz.
-Que seja!Estou cansado e vou embora.Pegou a mochila e saiu.
Era lavável.Colocou tudo aquilo debaixo da torneira vendo o efeito que produzia,estava ficando limpo
sem perder os atributos iniciais;ficou uma imagem bonita,original,inovadora.
-Não existe originalidade nisso.
-Achei que tinha ido embora.
-E fui,mas decidi voltar,esse horror que você fez,meu Deus,poupe os olhos alheios disto.
Sentei na poltrona mais próxima e fiquei ali observando a aula do aprendiz,parecia um homem experiente,sábio...Falava sobre teorias vanguardistas com muita habilidade,sobre a necessidade de por sentimento e amor no trabalho.Mas eu desconhecia o amor.Ele estava disposto a me ensinar.Tapou os meus olhos,segurou meu braço me conduzindo pela ampla sala.Pode parecer clichê os fatos após isto,contudo aquele jovem mudou a minha vida e minha arte.
-Tire os sapatos.
-Em que isso irá me ajudar?
-Tire os sapatos.Prosseguiu com a ordem.
-Você é louco.
-Tire os sapatos.Já disse.
Obedeci.Ele parecia obstinado.
Percorri toda sala com sua ajuda.O chão estava gelado.
-Sinta o chão.Descreva pra mim.
-Frio.
-Só isso?
Aproveitou-se da minha vulnerabilidade,da minha momentânea falta de visão pra me dar uma pequena aula.Empurrou-me com força.Fui ao chão em segundos.
-Um chão não é somente frio ou duro;uma coisa tem inúmeras possibilidades,elas afagam e machucam como as pessoas e os demais animais.
-Pode ir mais devagar?
Naquele momento avançou sobre mim,pôs-me de pé com uma força extraordinária.
-Está de pé novamente.Disse rasgando  minha roupa.
Naquele momento decidi que não estava mais participando daquilo.Em fúria arranquei o pano dos olhos.Eu estava nu e ele olhava fixamente pra mim.
-Reaja!Vamos!
-Pederasta!
-Não sou isso, não.Você é um péssimo artista,estou somente tentando te ensinar a fazer a sua arte.Bem...Acho que você já sabe, né?
-Desculpe.Mas,é um papel ridículo o que você está fazendo,me expondo e se expondo dessa maneira.
Olhou de forma ainda mais fixa e dura nos meus olhos.
-Em poucos minutos te ensinei a vulnerabilidade,o medo, a raiva,a dor. Coisas verdadeiras.Não dá pra mentir e enganar as pessoas como se elas nada fossem;um trabalho artístico transpira o autor;todos nós já sentimos fome,frio,dor,desesperança,alegrias  e momentos de euforia intensa.O que você cria está inteiramente ligado aquilo que você sente e é.
-Hum.
-Você nunca foi cego,mas por alguns segundos te fiz sentir como um.A sensação de abandono,de exposição.Da mesma forma que não sou um pederasta ou estuprador;porém te proporcionei a sensação de vitima.Tirei de você elementos que estão ao seu dispor diariamente e sequer percebestes...A pintura,a dança.o teatro,os textos a serem escritos estão todos diante de ti,falta apenas alguém que os interprete,que saiba senti-los com as entranhas,com as partes mais profundas do ser.

Naquele momento cada partícula minha amou aquele jovem.Essas foram apenas algumas lições aprendidas;depois daquela primeira aula ele disse que eu estava pronto,pronto pra aprender cada vez mais,as ferramentas estavam todas diante de mim.

4 comentários:

  1. De fato, aprendemos com tudo e com todos. A vida nos fornece elementos para o aprendizado, porém, muitas vezes estamos tão focados em nosso próprio eu que não percebemos e nem buscamos modos diferentes de olhar o mundo e suas singularidades.
    Abrs

    ResponderExcluir
  2. Adorei seus textos, li todos e são todos ótimos, mas "o dia que nunca existiu" realmente me conquistou. Sucesso! Beijão

    ResponderExcluir
  3. Ceci, você sabe q gosto muito de seus textos, mas nesse você se superou. Está algo de sensacional e mostra que de cada momento podemos tirar um aprendizado.

    Parabéns!!!

    ResponderExcluir