Benzeu-se. Olhou bem fundo nos olhos do Cristo menino que repousava no altar. Sentia medo. Colocou o véu, ajoelhou-se começando a orar... Seria descoberta a qualquer instante, talvez fosse melhor contar a verdade de uma vez. Levantou os olhos úmidos procurando os de Jesus; foi quando aconteceu algo curioso ou mentiroso, vai-se saber; de qualquer forma contam no sertão e no litoral, no agreste e no meio norte que Cristina erguendo os olhos topou com os do mestre, braços em cruz, feridas abertas, sangrando diante dela; não sentiu medo, sentiu apenas paz se espargindo dentro de si. Em segundos o primogênito de Deus expirou; tudo no ambiente modificara-se, as luzes estavam mais puras e radiosas, pareciam penetrar os objetos purificando-os; a igreja exalava perfumes de rosas, os próprios poros da mulher excretavam perfume, algo indizível, maravilhoso.
-O que está acontecendo aqui?Perguntou-se.
Não houve resposta audível. Apertou as contas do terço entre os dedos como pra confirmar a realidade, o fato dela mesma ser um ser real. As continhas queimavam-lhe os dedos, abrasavam-lhes a alma... A sua porção divino-espiritual debatia-se contra a matéria-corpo numa luta fremente. O errado jamais passa a ser certo ou vice-versa. Será?
Tinha dúvidas.
Os ponteiros marcavam duas e quinze da tarde. Levantou-se e saiu.
Todos olharam aquela mulher envolta em véus. Mistério completo.
-Herege!Traidora!Os gritos perseguiam-na; era uma mulher de imaginação ruidosa; os pensamentos dela pareciam tomar forma e irem de encontro aos dos passantes que começaram por sua vez a acusá-la.
Refugiou-se em casa. Puxou as cortinas pra preservar o ambiente doméstico.
-Cristina o que há aqui?Falou o esposo.
-Uma verdadeira celeuma.
-Tudo isso por causa de ti, de nós?
-Você acha pouco?
-Sossegue esse coração e essa mente. Estamos noutra cidade. Ninguém aqui sabe que não somos casados como ditam "as boas" regras de conduta.
-Estou perdida se nos descobrem. Já pensou na confusão, todos saberem que estamos amasiados?!
Gargalhou de forma gostosa, o que era natural nele.
-Estamos no século 21, meu bem, em que época pensa que estamos?
-O mundo ainda... Começou dizendo quando ele atalhou.
-Estou sem almoço, aliás você está.Vamos pra cozinha,a comida está ótima.
-O que temos?
-Surpresa mocinha... Chegando lá você vê.
Eu tenho que comentar pelo menos esse conto, Cecília.
ResponderExcluirÉ muito interessante que ela tenha sentido medo de Jesus menino e, pelo contrário, tenha sentido apenas paz e tranquilidade ao ver Nosso Senhor expirar, ferido e sangrando.
Ainda mais interessante é a inversão da narrativa evangélica, porque ao invés de - como na Bíblia - as trevas dominarem o céu quando da morte do Cristo, é a luz que passa a banhar tudo.
Ainda que tenha contemplado o onisciente, a luz que tudo penetra, o dilema moral da mulher não deixa de ser deveras tacanho. Tem medo apenas de ser descoberta, como uma criança malina. E passa a se perguntar se o erro não pode vir a se tornar acerto.
A acusação de heresia dos passantes, assim, se torna plenamente justificada. Não se trata de uma mera fornicação, mas sim de um pecado contra o Espírito Santo. A mulher chama as trevas de luz, chora diante da alegria infantil e consola-se com a morte abjeta.
Cristina era mesmo muito tacanha,aliás como muitos de nós. preocupava-se como coisas demasiadamente pequenas diante do verdadeiro assombro que se punha diante dela.
ResponderExcluirQuando ela viu Jesus menino,viu nele uma pureza que não lhe pertencia,sentiu-se pequena diante daquilo;a morte do Cristo pra ela é como a salvação,a limpeza dos pecados;porém mesmo assim ela continua perseguida pela "consciência".