quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Assombro - Barulho


Benzeu-se. Olhou bem fundo nos olhos do Cristo menino que repousava no altar. Sentia medo. Colocou o véu, ajoelhou-se começando a orar... Seria descoberta a qualquer instante, talvez fosse melhor contar a verdade de uma vez. Levantou os olhos úmidos procurando os de Jesus; foi quando aconteceu algo curioso ou mentiroso, vai-se saber; de qualquer forma contam no sertão e no litoral, no agreste e no meio norte que Cristina erguendo os olhos topou com os do mestre, braços em cruz, feridas abertas, sangrando diante dela; não sentiu medo, sentiu apenas paz se espargindo dentro de si. Em segundos o primogênito de Deus expirou; tudo no ambiente modificara-se, as luzes estavam mais puras e radiosas, pareciam penetrar os objetos purificando-os; a igreja exalava perfumes de rosas, os próprios poros da mulher excretavam perfume, algo indizível, maravilhoso.
-O que está acontecendo aqui?Perguntou-se.
Não houve resposta audível. Apertou as contas do terço entre os dedos como pra confirmar a realidade, o fato dela mesma ser um ser real. As continhas queimavam-lhe os dedos, abrasavam-lhes a alma... A sua porção divino-espiritual debatia-se contra a matéria-corpo numa luta fremente. O errado jamais passa a ser certo ou vice-versa. Será?
Tinha dúvidas.
Os ponteiros marcavam duas e quinze da tarde. Levantou-se e saiu.
Todos olharam aquela mulher envolta em véus. Mistério completo.
-Herege!Traidora!Os gritos perseguiam-na; era uma mulher de imaginação ruidosa; os pensamentos dela pareciam tomar forma e irem de encontro aos dos passantes que começaram por sua vez a acusá-la.
Refugiou-se em casa. Puxou as cortinas pra preservar o ambiente doméstico.
-Cristina o que há aqui?Falou o esposo.
-Uma verdadeira celeuma.
-Tudo isso por causa de ti, de nós?
-Você acha pouco?
-Sossegue esse coração e essa mente. Estamos noutra cidade. Ninguém aqui sabe que não somos casados como ditam "as boas" regras de conduta.
-Estou perdida se nos descobrem. Já pensou na confusão, todos saberem que estamos amasiados?!
Gargalhou de forma gostosa, o que era natural nele.
-Estamos no século 21, meu bem, em que época pensa que estamos?
-O mundo ainda... Começou dizendo quando ele atalhou.
-Estou sem almoço, aliás você está.Vamos pra cozinha,a comida está ótima.
-O que temos?
-Surpresa mocinha... Chegando lá você vê.

2 comentários:

  1. Eu tenho que comentar pelo menos esse conto, Cecília.

    É muito interessante que ela tenha sentido medo de Jesus menino e, pelo contrário, tenha sentido apenas paz e tranquilidade ao ver Nosso Senhor expirar, ferido e sangrando.

    Ainda mais interessante é a inversão da narrativa evangélica, porque ao invés de - como na Bíblia - as trevas dominarem o céu quando da morte do Cristo, é a luz que passa a banhar tudo.

    Ainda que tenha contemplado o onisciente, a luz que tudo penetra, o dilema moral da mulher não deixa de ser deveras tacanho. Tem medo apenas de ser descoberta, como uma criança malina. E passa a se perguntar se o erro não pode vir a se tornar acerto.

    A acusação de heresia dos passantes, assim, se torna plenamente justificada. Não se trata de uma mera fornicação, mas sim de um pecado contra o Espírito Santo. A mulher chama as trevas de luz, chora diante da alegria infantil e consola-se com a morte abjeta.

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  2. Cristina era mesmo muito tacanha,aliás como muitos de nós. preocupava-se como coisas demasiadamente pequenas diante do verdadeiro assombro que se punha diante dela.
    Quando ela viu Jesus menino,viu nele uma pureza que não lhe pertencia,sentiu-se pequena diante daquilo;a morte do Cristo pra ela é como a salvação,a limpeza dos pecados;porém mesmo assim ela continua perseguida pela "consciência".

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