quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Meia Dúzia



Era uma quinta diferente de todas as outras. Estavam reunidos ali pra julgá-lo. Era esse o seu trabalho mais arriscado. Mas qual razão havia pra que depois de tanto sucesso resolvesse ainda assim arriscar-se a criar uma história qual esta que segue? Respondeu apenas que era O Grande Desafio que havia proposto a si.

Olhos firmes e rasos estava pronto pras acusações e defesas daquela tarde.

O juiz entrou na sala carregando o grande livro: O Auto da Barca do Inferno. Excelentíssimo Gil Vicente parecia implacável. Logo atrás do meritíssimo entraram as testemunhas de acusação e de defesa, do lado direito do réu estava o júri popular. O promotor convulso esfregava as mãos. Teria início o julgamento mais importante de suas vidas.

Sentou-se e pediu que o júri e os demais fizessem o mesmo.

O réu jurou diante de todos com a mão sobre O Auto Da Barca do Inferno dizer a verdade, tão somente a verdade. Se houvesse Crime confessaria, se houvesse culpa haveria Castigo.

Começou a falar timidamente, contudo foi tomado pelas palavras, que vivas falavam por si de forma eloquente.

-Em minha defesa...Em minha defesa tenho a dizer que tudo quanto fiz durante esses 6 meses foi dedicar-me intensamente ao meu trabalho,buscar melhorá-lo,ter criticidade antes que outros como vocês o façam nesse julgamento.Sabia o tempo todo que esse dia chegaria,mas não pensei que fosse tão depressa e humilhante vir até aqui.

As testemunhas cochichavam entre si.Era uma verdadeira Paulicéia Desvairada ora a brincar ora a discutir o tema com seriedade.

-Rua dos Cataventos,Largo da Palma.Foi ali o local do crime?Perguntaram Quintana e Adonias Filho a um só tempo,inquirindo o réu.

-Não vejo Crime.Não cometi coisa alguma.Estou me sentindo tal qual as Vítimas do Preconceito.

-Ora,onde está o preconceito?Você ousa comparar-se a nós,diz-se grande escritor,contador de histórias mais fabulosas que As Reinações de Narizinho,e o preconceituoso sou eu?

-Então estou sendo acusado,julgado, por ousar como disse o senhor Monteiro Lobato escrever histórias.Desde quando isso é errado?

-Quando não nos ameaça.Olhe pra você uma criaturazinha medíocre,um reles escritor,desista do ofício meu caro,suas ideias não passam de simples Ilusões.Disse Padre Antônio Vieira começando com os Sermões.

-Alto lá padre!Desde quando vigário de paróquia pode se acreditar senhor do mundo?Bradou Erasmo de Roterdam furioso proferindo o seu Elogio da Loucura.

-Parece que ao menos um de vocês está decidido a ajudar em minha defesa.

-Assim Falou Zaraustra e assim falo também eu.Proferiu Erasmo e ajuntou essa:sou seu amigo,da mesma forma que Scliar era O Amigo de Castro Alves.Defenderei você com unhas e dentes.

-Obrigado.

Nesse instante alguns escritores saiam aos murros,rolavam pelo tapete da sala diante do juiz.

-Ordem no tribunal ou declararei suspenso o julgamento.Ordenou Vicente cravando os olhos fixamente em Gregório,o boca do inferno.Ele havia provocado agitação em massa.

-Guardarei as Memórias da Loucura de hoje.Falou Casmurro.Mas ainda assim não serão mais marcantes que as Memórias Póstumas de Brás Cubas...Ah,que memórias!

-Deixe de sandices Casmurro.Implorou Florbela tendo o coração contorcido,uma Charneca toda em Flor,fazia então a Lira de seus Vinte anos.Vinte anos de seiva e juventude...Espumas flutuantes.Era a data do seu Aniversário,o julgamento de um jovem escritor seria uma bela Mensagem?

Fernando Pessoa achegou-se ao réu e disse:

-Serei breve,usarei menos de Cinco Minutos do seu tempo.Respeito-o profundamente,contudo gostaria que pudesse entender a revolta deles:Vidas Secas,é isso que a juventude tem feito de grandes autores quais estes,mas eles são A Rosa do Povo,O Sentimento do Mundo.Gostaria que você os perdoasse.

-Quero somente a Reconciliação.Não farei da minha vida um Livro de Mágoas.

O relógio estava prestes a desferir a sua 12º badalada,Aqui Entre Nós havia O Grande Desafio,declarar Lindolfo culpado ou inocente.

O Juiz decidiu por bem ouvir O Veredito do povo:sozinho com eles confabulava o destino daquela criatura,enquanto esta do lado de fora, aguardava ansioso em Silêncio como fazem os Inocentes.

Após ouvir a todos Gil Vicente sentou-se,havia no Excelentíssimo juiz algo diferente, como se A Metamorfose tivesse se realizado por completo.Falando de forma improvisada passeava por toda a sala como se esta fosse Um Céu Numa Flor Silvestre.

Os Miseráveis do mundo trouxeram até nós um pobre homem que fia letras,tece palavras;influenciados por eles grandes escritores como os que se encontram aqui foram levados por intrigas a acusá-lo de sujar o passado glorioso deles ao dizer-se também um escritor.

-Mas,o amor é fogo que arde sem se ver excelência; e o referido cabra usando possível palavra do João Cabral de Melo Neto,não fala de amor.

-Amar,verbo intransitivo.O amor só precisa de si mesmo pra existir,sem complementos.E ele ama o que faz,e faz bem.Por favor,senhor juiz volte a dizer a sentença.Pediu Mário de Andrade.

-Continuando...Espero dessa vez não ser interrompido por ninguém.Alguns gostam de usar a expressão Amor Líquido em referência a relações fugazes e tênues.Porém durante toda a sessão de hoje pude perceber que a preocupação de vocês é desnecessária,aliviem vossos corações o autor aqui presente ama o que faz,pretende continuar escrevendo por longos anos e não pretende tomar o lugar de nenhum de vós,quer apenas exercer o talento que acredita ter,e a mim não cabe julgar se esse talento existe ou não,estou aqui apenas pra inocentá-lo do crime...Qual é mesmo o crime?Acredito que não havendo circustância que caracterize ação criminosa posso dar ao réu a sua Redenção.



 *Postagem comemorativa aos 6 meses do blog.
19 de Julho criação do Para Lelas e Verticais.



quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Vaso de Porcelana





Atirou o chapéu na mesa, sentou numa cadeira, arrotou aos quatro ventos pra quem quisesse ouvir e sentir aquele odor...


O garçom aproximou-se dele:

-Venha comigo, por favor, sua conduta não condiz com o estabelecimento.

-Não irei a lugar algum. Estou esperando alguém.

-Ou o senhor vem comigo ou chamo o gerente.

Nesse instante uma moça aproxima-se da mesa, cumprimenta a ambos, puxa a cadeira mais próxima e senta. É muito bela e discreta. Era disso em maior parte composta a sua beleza, da sua discrição.

O garçom olhou pro homem ainda sentado desajeitadamente uma última vez e saiu.

-Aqui está. Disse ela entregando uma pasta.

-Muito bem. Tirou uma caneta do bolso e rubricou nos locais indicados. Estava consumado.

Ela sorriu satisfeita. Um sorriso terno e doce, talvez maternal.

Levantou-se e saiu.

O homem ainda ficou ali por uma hora ou duas bebericando uma cerveja, a esta altura bem quente, deixou o dinheiro embaixo do copo e saiu. Ali não era ambiente pra uma criatura como ele, com a “esmerada” educação que tivera dos pais... Frequentar restaurantes finos tais aquele? Era a primeira vez. Era a primeira vez que sentia o verniz da sociedade, não se sentiu intimidado, mas estava contrafeito com o tratamento recebido, era contra seus princípios de educação frequentar lugares como o que acabara de deixar,foi por insistência de Isabel que se encontraram ali. Ficara órfão de mãe aos oito anos, o pai abandonou-a grávida, não o viu sequer uma vez em 30 anos de existência.

Na rua sentia o efeito das rubricas sobre o mundo. Contrato assinado. Rubricado em cada rodapé de páginas. Parecia feliz. Dentro de seus olhos brincavam as letrinhas do seu nome.

No outro ponto da cidade Isabel entrou no edifício, sempre cordial cumprimentou os funcionários da empresa. Ouvia-se a largas vozes por ali e por toda a parte o quanto ela era correta e querida entre os companheiros de trabalho, do maior ao menor, eram todos respeitados.

-Que mulher admirável, Jaime. Disse Pedro.

-Eu com uma mulher dessas estaria feito. Quem dera a jararaca lá de casa fosse tal qual ela.

Fechou a porta. Sentou. Folheou cada página com cuidado. Antunes havia cumprido sua parte no acordo.

-Antunes! Meu velho e bom Antunes. Era saudado na rua por amigos, conhecidos, aclamado com unanimidade.

-Olhe meu caro a melhor coisa que você fez foi vender a casa.

Enfim o negócio estava liquidado.

Com o dinheiro “ajudaria” inclusive a Isabel, ela que estava “ajudando-o” a ser um homem de classe. Aquele dinheiro pagaria as prestações que se acumulavam do hospital, os remédios e todo o resto. Antunes estava doente. Talvez morresse em breve, mas não estaria sozinho nem desamparado...Aquela mulher também seria paga, assim como o hospital e os remédios, pra acompanhá-lo em sua solidão.

Isabel era uma flor muito fina, mas não rara, advogada competente, escritório próprio e bem frequentado. Ajudaria de forma muitíssimo nobre aquele homem. Receberia centavo por centavo, cada minuto de companhia ou instrução de educação.

Os clientes eram cada vez mais frequentes... Em pouco tempo era procurada por outros Antunes, sua fama era imensa, a doce e amável mulher, educada, porcelana que ornava as salas, canto que enchia as manhãs, aquela que provocava suspiros e invejas...Ninguém suspeitava...Uma grande mulher ou uma grande ratazana?

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Vende-se Cão.Compra-se Dono.

Conto livremente inspirado na foto da cadelinha de Onà Nunes.Acompanhado de um trecho do Poeta Victor Hugo.






"Desejo outrossim, que você tenha dinheiro, porque é preciso ser prático. E que pelo menos uma vez por ano coloque um pouco dele na sua frente e diga "Isso é meu", só para que fique bem claro quem é o dono de quem". (Victor Hugo).




Vende-se cão. Compra-se dono.


A placa era clara a intenção também. O mundo movimenta-se de acordo com a lei da oferta e da procura. Há os que querem comprar e os querem vender ou algo, alguém, quiçá a si mesmos. Ali não era diferente. Ele precisava de um cão. O animal de um dono.


Feitos os ajustes necessários para a aquisição de ambos poderiam conviver debaixo do mesmo teto como iguais. Agora veríamos quem era o dono de quem. O verdadeiro animal e o verdadeiro homem.


-Juca. Gritou Cláudio, traga os jornais.


O animal atendeu a ordem do homem. Trouxe os jornais, posteriormente os sapatos, a sacola de pães... E uma lista infindável de pedidos.


Juquinha olhava Cláudio com amor, um amor ferido e humilhado.

-Ai, que preguiça! Suspirou fundo e colocou os pés na mesinha da sala, ligou a televisão e começou a assistir o clássico das tardes de domingo: o futebol.

-Juca, traga a cerveja.

E lá ia o cãozinho. Um empregado doméstico sem remuneração.

Intervalo do jogo começaram as propagandas aquilo despertou no homem um desejo que estava latente há anos. Ganhar dinheiro,enriquecer. Custasse o que fosse necessário.

-Vou ganhar dinheiro contigo. Repetia pro animal. Vou te ensinar a falar.

Juca não entendia bem aquilo. Desde quando animais falam? Ele pensava, entendia, um entendimento ainda bem rudimentar, mas nada que fosse comparado a aprender a falar, não era humano. Ou o dono que era um animal?

Estava irritado. Que criatura burra. Onde estariam os seus neurônios? Não pronunciava palavra.

Eis que um dia foi surpreendido. O cão aproximou-se dele. Notas na boca disse:

-O dinheiro é meu.

Fugiu com toda a reserva de dinheiro do dono. Havia aprendido.