quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Pecado Original


Apanhou a flor, apanhou o amor que ele lhe dera gota por gota, era pouco. Gostava de banhar-se em cascatas de cachoeiras grandiosas, beijada e amada por peixes, por todos os deuses. Espiada pela Lua, adorada pelos Sóis. Era o canto mais suave e mais impetuoso da natureza: uma mulher, a minha mulher, artigo definido e possuído por mim.
Morreria pra satisfazer cada um dos seus caprichos. Tudo bem não sou sagitariano, nem tão pouco sou regido por qualquer signo zodiacal.
Chegarão amanhã minha arqueóloga e seu “pupilo fóssil’’.
Desembarcaram ambos, trazia-o preso a sua mão pequenina e macia aquilo que alguns ousariam chamar de mão.
-Meu Deus!Será que precisava tanto empenho?
-É meu trabalho.
-Trazê-lo pra morar conosco faz parte do seu trabalho também?
Deu de ombros deixando-o resmungar sozinho, observando aquela cena dantesca, era um delírio só poderia ser; alguma ingestão acidental talvez... O que poderia tê-lo envenenado?
-Não seja criança e trate de acordar desses seus devaneios. Como você fantasia; sabe qualquer um diria que sou sua mãe. Comporte-se como marido hein?!
-Essa é boa!E o que tenho sido então senão um pra você?
Já estava correndo atrás dos dois; a esposa e o ilustre acompanhante andavam rápido em demasia.
Gostaria de descrevê-lo. Não encontro termos apropriados em linguagem humana. Direi tão somente que é um resquício da primeira leva hominal, se é que é um termo apropriado.
Havia encontrado o Adão da ciência; seria altamente condecorada, teria as maiores honrarias e privilégios da Terra; seu séquito de seguidores seria ainda maior. Viu-se cortejada pelo Sol em todo esplendor e arrogância, eram iguais.
Aquele ser assustado e assustador observava-a trocar as vestes intrigado. Estava tonto da viagem, a memória razoavelmente afetada pelo tempo. Mas sabia plenamente com que tipo de gente estava lidando ,afinal, eram da mesma espécie, graças a esforços de seres como eles tinham progredido e civilizado. O raciocínio era parco, mas o instinto não o trairia.
O Novo velho homem passava por testes clínicos periodicamente, testes de reflexo, acuidade visual, e primordialmente todos as investigações relativas a mente e sua funcionalidade;foi confirmado que o crânio humano expandira-se com o passar dos séculos, entre outras coisas.Eram minuciosos e frios,extremamente detalhistas em tudo quanto pudesse servi-los;tinham em seu poder um espécime único, a coisa mais surpreendente da natureza humana sobre todos os aspectos,questionava-se sua moralidade,seus modos,sua existência paralela ;embora mostrasse claros resquícios de inteligência parecia alheio ao circundante,era primitivo.
-Eureca!Eureca!O eco das próprias palavras ainda fazia ruídos dentro de si.
-O que descobriu?
-Parece um homem congelado, e digo mais: aparentemente em ótimo estado de conservação, mirava-o com interesse, era repugnante, mas tinha olhos muito vivos pra alguém que estivesse congelado há tanto tempo, aquilo atraiu sua atenção, seu desejo de desvendá-lo. Quando se puseram a desvencilhar o objeto em estudo do gelo, ele verdadeiramente eclodiu,nasceu, nasceu da forma mais inusitada. Não pronunciava palavras a principio entendíveis, emitia somente sons guturais, aos poucos a comunicação foi se estabelecendo entre ele e membros da equipe, principalmente com sua ilustre descobridora; uma mulher diabolicamente divina, alguns suprimiriam o artigo divino...
Ao financiador da expedição:
-Quanto me daria por um “ser” como esse?
-Ah!Querida pense no bem da comunidade cientifica.
Um ranger leve na porcelana dos dentes quase os trincou por completo, um jeito nos cabelos, levanta se aproximando dele.
-Precisarei de você meu amor.
-Como sempre,não é?
-Tem valido a pena, ou não?!   
-Não sei.
-Pois te digo!Depois que assumi o comando das expedições que financia, seus lucros empresariais são cada vez mais vultosos, seu dinheiro é aliado da minha competência.
-Sempre modesta!Minha parceira perfeita, em tudo!
-Acho que eu não seria tão categórica quanto tu és nessas afirmações...
-Remorsos das explorações clandestinas?
-Jamais, falava apenas doutras coisas. Agora preciso ir meu embarque é pra logo, ou estou lá ou fico aqui nesses confins.
-Fique comigo!
-Por que confundir sempre as coisas?
-Ofendida Madona?
-Sim ,por certo. Deixe-me por obséquio.
-Achei que até alguns instantes era seu amor, como sois frívola.
-Tenho senso de oportunidade só isso.
-Quando enfim dormirás nos meus braços?
-Adeus!Espero sua contribuição na conta de sempre, afinal o que nos une são apenas negócios, escusos, mas ainda assim negócios.
Viu as harmonias do talhe se esvaindo por entre as espirais das escadas, adorava contemplá-la nesse estado de mulher ferida e distante,um dia venceria aquele orgulho.
Em casa...
-E então Carolina como foi o seu dia com o nosso hóspede?Depositou em seus lábios róseos o  beijo costumeiro: -Amo você querida!
Estava alheia aquela afetuosidade, lembrava-se doutras coisas mais importantes, não poderia, não agora, prescindir de tino e agilidade de movimentos, uma raposa perfeita, ardente de desejos não consumados e inconfessáveis.
Olhou-o com ternura, tinha pena dele, tão apaixonado; seguiria até o fim naquela farsa, fingiria amor e “ais” repassados de saudade quando tinha apenas pena. Pena de quê?Não sabia ao certo, talvez fosse algum grito de consciência rouca. O fato era: um marido fazia-se necessário, sua postura de mulher honesta, bem casada, reputação inatacável por todos os aspectos precisaria ser mantida a qualquer custo e nada melhor do que um casamento como aquele com um homem de virtudes inquestionáveis; suas lavagens de dinheiro junto ao financiador jamais seriam descobertas. Quanto a amantes?Não teria estômago pra tanto, era preferível viver em castidade espiritual por que física já não era possível com um esposo tão devotado quanto o que possuía.
Olhos rasos d’água:
-Senti tantas saudades de ti querido o dia foi tedioso, sabes que ainda não tenho feito muitos progressos com ele. Enlaçou o seu pescoço com carinho, sussurrou baixinho no ouvido dele “estou cansada, poderia me levar pra cama?”, e aquilo era a senha pra tudo quanto ela sonhara conseguir dele, sua fragilidade encantava-o embora não fosse genuína.
Ele era puro e bom, via sua deusa, sua senhora, ou dona como queira, quiçá mestra; esse sim é o termo mais apropriado, como uma sílfide, dotada de qualidades admiráveis,adorava dedicar-lhe predicativos sempre ostentados com verdadeiro frenesi por sua rainha.Comandava cada um dos súditos de forma especial,única, como ela mesma.
“Todos querem sentir-se amados, indispensáveis ,e é importante cultivar neles a vaidade, sufocar o que poderia afastá-los de sua nefasta influência.” Seria eu tão má assim?Quisera somente o meu quinhão de felicidade terrena. Não matara, não causara intrigas, respeitava pai e mãe, guardava o sábado indo as missas com freqüência usual, não cobiçava o homem alheio,enfim ,seguia razoavelmente bem o decálogo:seu mais alto pecado era roubar.Fazia-o sem muitos escrúpulos.Gostava do poder e dos seus meandros, utilizava-o pra chegar onde queria,não tinha lá muitos limites sua ambição.Venderia os pais?Os dela não, mas os seus sim leitor, portanto cuidado!Mantenha distância calculada.
Dormia com a cabeça repousada no seu seio alvo e palpitante. Gostava de cismar sobre aquele homem e sobre si mesma. Dentro do seu peito havia um casebre que destinara a ele, era a porção de amor que lhe cabia, sim, naquele instante ao vê-lo dormir consigo tão entregue e vulnerável, amou-o deveras, não tanto quanto ele merecia, mas já era algo: um casebre. Contudo isso não foi suficiente pra impedi-la de leiloar um ser humano em praça pública, tal qual escravo; o ser mais antigo da humanidade encontra-se exposto nas galerias mais famosas do mundo, arrebatado por incalculável fortuna: ganhara-o de presente de um admirador secreto,possuía título de propriedade sobre o animal, podia vendê-lo ou explorá-lo quanto quisesse.Seu nome permaneceu incógnito,jamais pronunciado em transações, o esposo esse um coitado, um infeliz, jamais suspeitaria de tal primor social e conjugal.
Desfilava seu amor próprio numa das galerias mais famosas do mundo. Agredida e morta pelo selvagem; tinha afinal o orgulho vencido, não por um homem como o de outrora, porém por um animal tão primitivo quanto ela. A eterna revolta da criatura!
Seus instintos de aço haviam sido preservados sobre uma espessa camada de gelo por séculos, milênios a fio, impossível o Adão histórico ser enganado por uma Eva qualquer, tudo nela exalava os mais torpes sentimentos, o seu parco amor medrava, sufocava-se no lamaçal que era sua alma.
O perigoso ser sofreu um processo de recongelamento, a misérrima criatura viu na arqueóloga os instintos mais baixos, compartilhava todos eles numa época tão remota, tão presente e vanguardista.
Um dia o homem adâmico abriu as pupilas ressecadas, diante de si havia uma rosa desabrochando em pétalas douradas, douradas de amor.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Pavilhão 7


Ênio estava trancado em uma cela 2x2, respirava com dificuldade,sentia um calor infernal.Não recebia visita de parentes ou induto de natal.Com ele poderíamos contar 5 presos na cela.Dormiam por turnos,enquanto os outros ficavam de pé vigiando ou morrendo,fosse de sede ou de solidão.Ali era o lugar mais temível pra se viver.Todos bandidos,cada qual havia cometido algo pior que o outro.
Naquela noite Ênio não dormiu,pensava nas filhas e na mulher sozinhas em casa.Teriam o que comer uma hora daquela?Que horas seria lá fora?Lá dentro não havia horas,passavam-se dias,meses,anos;não sabia ao certo quanto tempo estava ali,o advogado não aparecia há muito tempo...
-Condenado por tráfico de drogas.Foi o que ouviu no dia da sentença do juiz.
....
-Quantos anos você ainda fica aqui dentro?
-Não sei...Seus olhos não saberiam mesmo responder quantos anos ainda teria pela frente;os anos de condenação ele sabia,mas quanto havia cumprido de pena ou quanta restava cumprir ele não sabia.
-Você devia marcar na folhinha.
Ênio não respondeu,ficou ali com seus pensamentos.Seus dias estavam contados,poderia ser morto a qualquer momento por algum rival ou mesmo por alguém na cadeia.Havia muita gente disputando seu ponto de tráfico.Fugiria em breve,a solução seria fugir.
A rebelião teve inicio num dos dias de visita.Com "inocentes" lá dentro o apelo seria maior.Mais uma vez suas filhas e sua mulher não estariam ali,foi a única vez que isto o fez sorrir.
Em casa Lurdes e as meninas não tinham grana nem pras necessidades básicas.As crianças eram tão pequenas ainda...Não saiam pra pedir comida ou dinheiro,viviam ali dentro daquela pequenina prisão na qual havia se convertido a casa.Sentadas na cadeira,tinham as cabecinhas repousadas sobre a mesa,numa tristeza cruel,amarga.Não havia como sair dali,o medo era maior.Ênio e sua família estavam jurados de morte pela facção rival.
-Lurdes!
Era Ênio entrando em casa.Havia conseguido fugir.
-O que faz aqui?Disse a mulher assustada diante da cara de poucos amigos do marido.
Ênio sacou o revólver e atirou.Primeiro na mulher,depois nas filhas.Quando a polícia chegou encontrou apenas a carnificina.
Fugiu sozinho pois já não havia consciência ou fardo a ser carregado.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Nunca Saberás


Era noite e eu caminhava por entre os muros do castelo.Pisava as folhas de outono amarelas e secas,o tempo estava fresco e me convidava a sonhar.Eram sonhos de menina ainda:tecidos,rendas,pequenas prendas mimosas...Ele m'as daria?
Entre sonhos doces senti seus passos,acordei de súbito de meu devaneio.
-Há alguém aí?
Podia ver sua sombra projetada na muralha do castelo.Não houve respostas, no entanto,a sombra caminhava pra mim,aproximava-se lentamente e eu como que pregada ao solo não conseguia fugir,gritar,fazer coisa alguma que me pudesse salvar.Em breves passos estava diante de mim,tomou minhas mãos frias entre as suas,levantou a face,era um cavalheiro mascarado.
Não falava coisa alguma olhava-me apenas,mantinha minha mão entre as suas e eu abaixava os olhos rubra de vergonha e medo.Não sei quanto tempo estivemos ali,mas o fato é que sumiu da mesma forma como apareceu.
Um pouco tonta e fatigada pelas emoções que me dominavam adentrei a fortificação.No quarto a criada me despia e eu pensava apenas:
-Quem és?Quem és que atravessas o meu destino dessa forma?Por acaso desconheces que sou filha do rei?Que não se aproxima duma dama dessa maneira furtiva e sombria?
Não estava em mim.Doutra forma ele não me teria tocado.Decerto foram os sonhos,os excessos de sonhos de moça...
No dia seguinte conversava com mamãe no nosso terraço predileto.Ela me falava dos preparativos do  meu casamento.
-Quando conhecerei meu noivo?
-No dia de seu casamento.Diante do altar.
Meus olhos tristes vagavam pelas colinas vastas que cercavam o castelo.Também ele era um cavalheiro que tomaria minhas mãos entre as suas,e assim como o outro este me parecia mascarado.Afinal,qual diferença?Se de nenhum dos dois conhecia os rostos,o gênio...

Mamãe parecia tentar invadir meus pensamentos.

-Tire essas ideias da sua cabecinha Marina.Olhe as colinas que nos cercam...Além delas há tantas outras:elas também serão suas com o casamento.Seremos um só reino,selaremos em definitivo a nossa aliança.
Nos dias posteriores ele parecia seguir-me de perto.Sentia seus olhos nos campos,nos bailes,sentia-me observada em todos os lugares,no entanto desconhecia sua face.
A casa segundo passado ansiava por vê-lo novamente.As horas distantes eram um martírio imenso.
Estaria casada em poucos dias.O destino era certo.
Mas em algum lugar alguém parecia tramar uma fuga.Era ele.O cavalheiro mascarado apareceu novamente e me levou com ele.
Nunca vi sua face.
-Deixe-me vê-lo.
-Quem eu sou?Tu nunca o saberás.Apenas estou contigo e tu estás comigo.Será meu segredo.
Vivemos anos sem que eu soubesse sua verdadeira face.Era sempre muito cuidadoso e não permitia que eu o expiasse sem ela.
Muitos anos após sua morte eu vivia do pequeno armazém que ele deixara a mim e ao nosso filho Alberto;tirava umas rendas da caixa pra mostrar as senhoras quando ouvi:
-Pois é Filomena dizem por aí que a Princesa fugiu pra não casar-se com o Príncipe;porém o mais entranho é que ele também fugiu.Não há vestígios nem de um nem de outro.
-Deve ter fugido com alguma amante.Sussurrou Filomena.

Porém em minhas lembranças ainda ecoavam as suas palavras:
-"Nunca saberás"
Agora eu sabia.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Jogo de Espelhos


-Tina,iremos na casa de sua prima Emília.Vista-se logo.Estou com pressa.
Em pouco tempo estavam na sala prontas pra sair.
-Vamos logo não quero chegar tarde.
Na casa de Emília um quase monólogo se instalava.
-Li esse livro há anos.Tome.Você vai gostar.
-Ah...Obrigada.Disse Tina tentando sorrir.
-Há também esses Cds,Dvds...Você vai gostar.
-Guarde mamãe.Disse Tina.
Emília passeava por todo o quarto, parecia extasiada.Gesticulava demais,falava alto.
-Como eu ia dizendo pra vocês: Roberto e eu mandamos ampliar a casa pra quando as crianças chegarem,e depois também temos os parentes,e no futuro os netos pra que preencham esses novos espaços.
-Oh,mas venham comigo pois está na hora do lanche.Devem estar com fome...Pudera vocês moram tão distante...Fico feliz que tenham vindo me ver.
-Também estamos felizes não é Tina?
-Claro mamãe.
-E,então estão gostando do lanche?Posso mandar preparar algo pra levarem na viagem de volta,vocês moram tão longe...Sentirão fome no trajeto de volta.
-Prima Emília você nunca foi em nossa casa, do contrário saberia que não moramos assim tão longe.De qualquer forma agradeço a gentileza.
Era mesmo verdade: Emília nunca havia visitado a prima.Não eram assim tão amigas,mas era preciso recebê-la,ser sociável.
Tina achegou-se ao ouvido da mãe e disse:
-Vamos embora mamãe.A prima Emília é muito chata.
-Não fale assim filha ela te deu tantos presentes.
-Não pedi nada.Ela deu por que queria aparecer,se mostrar bondosa.
Emília ouvia tudo calada e fingia não ouvir,porém afirmava pra si mesma que aquilo era verdade.
As visitas levantaram e anunciaram a saída.
As mulheres se abraçaram sem nenhum afeto de parte a parte,cada qual ali queria o seu quinhão:uma queria apaziguar os próprios demônios fazendo-se bondosa,ainda que falsamente.A outra ia comer da melhor comida que havia na mesa de toda sua família.E,por fim,temos Tina que desejava ocultamente tudo aquilo,pra depois desdenhar dos presentes.
Era começo de noite,mas estranhamente fez-se luz:
-Prima Emília..
-Diga Tina.
-Não gosto da senhora.
A mãe de Tina não sabia onde por o rosto.
-Filha..
-Não me puna mais mamãe.Acho que passar a tarde diante dessa senhora esnobe já é castigo o suficiente.
-Pois se querem saber - dizia Emília - Eu que não aguento mais as visitas de vocês duas.Só sabem sugar,nenhuma vem aqui pra saber como eu estou ou o que penso.Querem apenas presentes e boa comida;e não pensem que eu não sei que falam mal de mim mesmo quando ainda estão em minha casa.

Enfim caíram as máscaras.Estavam limpas diante de si mesmas e das outras pela primeira vez na vida.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

A Era dos Loucos


Era meu dia de folga.E dessa vez aproveitaria o dia de uma maneira talvez inusitada e estranha pra muitos.
Ainda pela manhã tomei a condução que ia pra Tamarineira.A viagem era longa,o destino era bem distante de onde eu morava porém estava decidido.Pra quem não conhece, a Tamarineira é um bairro do Recife,no qual funciona um hospital psiquiátrico.E foi lá que decidi passar minha folga.

Adentrei pela primeira vez aquele hospital.Não sem antes observar as pessoas que circulavam por ali.Alguns vinham tristes,é mesmo bem triste ter um parente ou amigo nessa situação.Outros por sua vez vinham alegres,inebriados de loucura...Talvez a mais doce forma de lucidez.

Estava circulando em uma das alas quando ouvi gritos:
-Socorro!Vão me matar.

Eu sei isso é um hospital de loucos,muitos deliram ali,mas e se algum deles estivesse em perigo ou tomando choques elétricos como no século passado ou retrasado se fazia com os doidos?
Precisava "salvar a vítima".Ao chegar lá me deparei com uma mulher muito jovem,quase menina,não revirava os olhos como você pode tentar supor,muito pelo contrário...Seus olhos pareciam muito lúcidos,brilhavam de contentamento apesar dos gritos anteriores.

Sim eram dela os gritos.Naquele momento ela era a única no corredor.
Fiquei um tempo olhando-a.Era tão jovem,um pouco bonita,dizendo melhor:era muito bonita.O que fazia ali?

-Ora você pensa que só os feios enloquecem?Disse uma voz vindo de dentro de mim.

Fiquei atordoado.Será que eu também  estava enlouquecendo?Com tantos lugares pra ir num dia de folga e eu havia resolvido ir a um hospício?Era a caridade que me movia.Estava em dívida com Deus e com os pobres.
-Não seria curiosidade?Disse novamente a voz.
Balancei a cabeça pra espantar os pensamentos,sim aquilo deveria ser um pensamento,eu estava pensando alto só isso.Repeti várias vezes tentando me convencer.
-Você também está louco?Disse enfim a mocinha me vendo naquele estado de estranheza.
-Como assim?Eu não sou louco.A doida aqui é você.
-Eu sei.Você também não parece muito bem...
-Eu?Eu estou ótimo.
Não ficaria ali mais nenhum minuto.Corri pelos corredores,nem sei quanto corri nem pra onde corria dentro do hospital;a louca vinha atrás de mim junto com médicos e enfermeiros que por certo me tratavam como louco.
Veja bem leitor,preste bem atenção:
-EU NÃO SOU LOUCO.
Você me ouviu não ouviu?
Por sorte consegui escapar deles.Passei um sufoco,mas consegui.

Agora estava entre vários loucos.Conversavam muito alto.Discutiam política.Fiquei observando sem me aproximar.
-Jorge, você está errado.Dizia um deles,o mais alto.
-Como errado?Ora,na política meu caro,vale de um tudo.
-Como de um tudo?Onde ficam os valores?E o povo nisso onde fica?Interferiu um terceiro homem.
-Que errado nada.Eu mesmo quando era prefeito da minha cidade roubava,roubava mesmo,comprava votos também.Dizia o Jorge.
-É contra lei.Gritou Maria.É contra a lei de Deus e dos homens.
-Que Deus que nada!Gritou Leôncio.O mais alterado deles.Eu sou Deus.Eu faço as leis.
-Você Deus?Se você é Deus pois que eu sou Maria Madalena.Somos todos loucos.Você não vê?Isso é um hospício.
Ouvindo isso começaram a brigar entre si.
-Calma pessoal.Resolvi entrar no meio antes que algo sério acontecesse ali.
-E, você quem é?
-Ora não me reconhecem?Sou Deus.(Disse tentando invocar um ser de autoridade superior pra apaziguá-los)
-Você é um falso profeta dizia Leôncio,o que acreditava ser o próprio Deus.
-Amigos,venho em paz.Pra que reine a paz entre vós.Eu vos disse: amem  uns aos outros.Não lembram?
Alguns ajoelharam diante de mim.Outros mais desconfiados me olhavam de lado,sem se intrometer na conversa que viríamos a ter de ali por diante.
-E, então como vão todos?Disse eu.
-Como vamos?Vamos bem.Disse Maria.
-Bem coisa nenhuma.Retrucou o Jorge.
-O que há?Questionei.
-Ora,essa história de "como vai" não pega bem.Quase todos mentem.Estamos todos sempre bem uns pros outros,como numa tentativa de afirmação pra si próprio de que tudo irá melhorar ou que já está tudo nos eixos.
Fiquei estupefato com a explicação.Ele estava certo.
-O senhor foi prefeito não é?Perguntei.
-Sim fui prefeito da Tamarineira.
-Não sabia que era uma cidade.Pensei ser apenas um bairro do Recife.
-Ora,Deus com o perdão da palavra:o senhor está doido?
-Mantenha o respeito filho.Dizendo isso me despedi de todos.Tinha a intenção de sair dali o mais rápido possível.
Num corredor específico do hospital havia uma porta meio aberta.Fiquei ali escutando.
-Doutor,vim visitar meu filho.Mas,não o encontro no hospital.
-Senhora,ele tentou fugir essa manhã estamos todos de prontidão no hospital.Não há como ele fugir.Ele usa roupas credenciadas do hospital.Nosso pessoal é extremamente especializado e bem treinado.
-Oh,doutor o Pedro Neiva está cada dia pior.
Nesse momento a ficha caiu pra mim.Adentrei a sala e me entreguei.Eu era o mais louco,o mais alucinado de todos eles.

*Isso é uma obra de ficção que de nenhuma forma visa ofender os pacientes portadores de distúrbios mentais.O texto é somente pra ilustrar que muitas vezes o mais lúcido de nós é o mais louco,e o contrário também pode ser aplicado.
**Se quiser saber um pouco mais sobre o VERDADEIRO hospital da Tamarineira acesse o link:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hospital_Ulysses_Pernambucano

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Uma Grande Conversa


Chegou em casa pensativa.O dia havia sido muito desgastante.Os alunos estavam a cada dia mais crescidos e birrentos e o salário mais minguado.Sobre o joelho um caderno amarelo de capa gasta.Pertencia a um dos alunos.Devolveria na segunda.

Colocou o caderno sobre a mesinha de centro da sala e foi pra cozinha preparar o jantar.Comeu sozinha.Não era casada,não tinha filhos.Os pais de Lilian moravam noutra cidade,iria vê-los no dia dos pais.Ainda faltava um pouco.

Desligou todas as lâmpadas da casa.Certificou-se que todas as portas e janelas estavam trancadas.Voltou novamente à sala e sentou-se no sofá.Ficou ali sorvendo mansamente aquele espetáculo de escuridão,absorvendo pouco a pouco os elementos do ambiente:a escuridão e a calma.Adormeceu.

Mergulhemos então na mente de Lilian e saíbamos o que se passou essa noite enquanto sonhava.

-Onde estou?Disse ao se deparar no quintal de uma casa.
-Você está entre amigos.Disse um dos homens e completou:
-Venha conosco.
Eles atravessaram o muro coberto de musgo.
-Como vocês fazem isso?
-Isso é só um sonho.Não tenha medo.
Assentiu com a cabeça e entregando sua mão a uma senhora prosseguiu a excursão.
-Iremos fazer uma viagem.Disse a mulher.
-Não diga que tomaremos um ônibus em pleno sonho?
-Não será preciso.Comandaremos tudo com a imaginação.Não esqueça você está apenas sonhando...Isso é um processo normal:quando dormimos a mente se liberta um pouco dos problemas e inquietações e fica livre pra imaginar,pra criar coisas.Você cria coisas muito boas quando dorme.
-Eu?Indagou perplexa.
-Venha ver estas flores.Vê o quanto são belas?Você vem aqui todas as noites no jardim dessa casa e rega todas elas.
-Não lembro de ter feito algo assim.Raramente me lembro de sonhos.
-É que sua mente anda muito inquieta.Relaxe um pouco.Respire fundo.Agora pense nas coisas que você gosta,que você ama.
De olhos fechados a professora pensava nos entes que mais amava:os pais.os alunos...E em tantas outras coisas pequenas ou grandes diante do coração.
-Agora abra os olhos disse o homem.Veja o que te cerca.
Diante de Lilian e de todos os presentes viam-se imagens imperfeitas das várias emanações do pensamento dela.
-O que é isso?É assombroso.
-Quando nós pensamos nós criamos aquilo.De alguma forma isso tudo é real.Mesmo sem ser.
-E quanto as flores?
-Você costumava gostar muito de flores na sua infãncia...Lembra?Você está de alguma forma lembrando daquilo,cultivando suas memórias e trazendo-as para o presente,cultivando ainda mais flores...Hoje você cuida tão pouco delas.
-Moro em um apartamento,fico pouco tempo em casa,vivo uma rotina muito difícil...
-E, é pra mim que você vem dizer isso?Sei de tudo sobre você.
-Quem és?Um mago?Bruxo?
-Sou uma parte do teu cérebro.O teu subconsciente,quardo as tuas memórias.
-Hã?
-Bem vinda a vida querida.Agora que você já sabe como tudo funciona,que tudo que fazemos deixa pegadas,rastros,se posterioriza de diversas formas...Você bem que poderia nos dar um descanso de tantas preocupações,não acha?

O sol não conseguiu entrar através das portas e janelas trancadas.Naquele sábado Lilian dormiu  calma e longamente.Estava precisando.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Não é Preciso Dizer Adeus


Pegou os elementos rústicos e guardou-os no fundo de uma caixa.Olhou-se.Estava muito bonita,perfumada,penteada...Rodava  os anéis nos dedos como um bambolê.As meias eram novas,e a tiara bordada também era.
-Vamos.
Rute não se despediu de nada.Somente no futuro poderia dimensionar aquela partida,aquela ruptura com o sertão.
Os anos passaram-se,e nossa Rute observava do portão os filhos dobrarem a rua pra irem à escola.Um aperto no coração.Era a primeira vez que iam sozinhos.Estavam grandes.Quase adultos.
"Mentira".Disse pra si mesma.Eram apenas crianças.Daqui a pouco ligaria pra escola,queria ter certeza que chegariam bem...
Entrou em casa desnorteada,segurando-se nas paredes,sentou-se perto da janela.Estava preocupada.
-Rute!Gritou uma vizinha no portão.
-Agora não posso.Estou ocupada.
Continuou ali na janela vendo a vizinha ir embora.
-Que ocupada que nada.Ela estava era na janela vendo a vida alheia.Pensou a outra seguindo o caminho de volta até em casa.
As horas iam passando.Precisava por as coisas em ordem, fazer o almoço,tirar as roupas do varal,arrumar as gavetas...E foi dentro de uma gaveta que encontrou a caixa,limpou-a com um pano seco e deixou-a  na sala esperando a volta das crianças.Fechou a porta de casa.Saiu pra buscá-las.
Conversaram animadamente durante todo o caminho.Alexandre e Fernanda contavam pra mãe a grande aventura que tinha sido a primeira ida sozinhos até a escola.
-Fizemos como a senhora disse mamãe.Nada de conversas com estranhos.Disse Alexandre.
-Tenho duas surpresas esperando por vocês lá em casa.Disse a mãe sorrindo contente.
-Conta mamãe.Pediram os dois a um só tempo com olhinhos ansiosos pelas novidades.
Depois do almoço a primeira surpresa surpresa:
-O sorvete de abacaxi que vocês tanto gostam.Disse orgulhosa.
Enquanto as crianças se deliciavam com a sobremesa Rute pegou a caixinha e colocou-a no colo.
Alexandre sempre atento não perdia nenhum detalhe.
-Mamãe que caixa é essa?
-Venham cá.Aproximem-se.
Elas se aproximaram repletas de curiosidade.
-Que há aí dentro? Disse Nanda.
A mulher abriu a caixinha de madeira e lentamente tirou um a um os objetos,mostrando-os aos filhos.
-Um anel!Exclamou Fernanda com os olhos faiscantes.
-Era da mamãe quando ela era assim quase do seu tamanho.Falou Rute.
-Uma boneca de pano mano.Olhe o tamanho dela...Bem pequena.
-Uma sandália e que cheiro engraçado ela tem.
-É de couro filho,é o cheiro do couro.Foi minha primeira sandália.
Ficaram ali brincando durante toda a tarde com os resquícios da meninice de Rute.A saudade apertando no peito a cada brincadeira dos filhos.Era ela ali de novo,vivendo de novo,perpetuando-se...Uma forma de nunca dizer adeus...Como nunca soubera dizer pra sua terra.Nem sempre é preciso dizer adeus...

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Por Favor,Uma Dose de Calma...


-Belos sapatos.Disse pra amiga ao se despedirem.
Clara ficou imóvel vendo a outra confundir-se na multidão; parecia alheia a tudo,como se nada mais tivesse importância.Deu uma volta,depois seguiu pra casa,depositou os pacotes das compras que fizeram no sofá,começou a abrir um a um os embrulhos.
"As compras vieram trocadas".Recolocou tudo no lugar.Devolveria as sacolas depois.Estava muito cansada.Remexeu as sobras de pão na cozinha,tomou um café frio.Escovou os dentes.Deitou-se e dormiu.

Horas mais tarde...
Trim.Trim.Desligou o celular sem nem ver quem era.Continuou dormindo como era de se esperar numa madrugada.
Estava quase amanhecendo quando ouviu baterem na porta.
"Quem será essa hora?" "Não vou atender,que espere até amanhã seja lá quem for".
Mas o tal seja lá quem for continuou batendo na porta.
"Que ódio!".Colocou outra roupa por cima do pijama e foi espreitar quem estava lá fora.
-Paula,o que você faz essa hora batendo na minha porta?Você está bem?Aconteceu alguma coisa?
-Você está com minhas compras...E eu vim buscá-las.
-E não poderia ter vindo mais cedo ou  ter esperado até amanhã?
-Tentei falar com você,mas você não atendeu.
-Já estava deitada.Desliguei sem nem olhar quem era,quis continuar dormindo.
-Mas eu não consegui dormir.Meus remédios ficaram nas compras que vieram contigo.
-Aqui estão.Confira.Disse tentando parecer gentil.A verdade é que estava detestando ter seu sono interrompido por aquela confusão.
Despediram-se.
Já na cama Clara não conseguia dormir.A outra parecia ter levado o seu sono com ela.
"Que fazer?" Ligou pra uma farmácia 24 horas e pediu um tranquilizante.
Não seria mais fácil se a amiga tivesse feito isso ao invés de vir perturbá-la?
Antes que o entregador chegasse dormiu...Daqui a pouco outra raiva: acordaria novamente pra receber os tranquilizantes...Ao menos eles cumpririam seu papel.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

"E no Meio do Caminho Havia..."


Essa manhã houve um grave acidente aqui na rua. Começava a narrativa o Gabriel, morador ilustre daquela cidade; o jornalista estava atento a cada palavra do homem, aquilo era uma situação muito peculiar.

-Pois, então senhor...O que o senhor disse que faz mesmo?

-Sou jornalista. Faço perguntas pra colocar na reportagem, quero contar pras pessoas o que aconteceu.

-Mas isso eu posso fazer. E melhor que o senhor, eu vi tudo, todo o ocorrido.

-Então “tá” certo, farei uma reportagem em áudio e vídeo, melhor do que só escrever a matéria.

Improvisou a filmadora que tinha no carro. Seria sem o câmera mesmo, fariam o trabalho, ele e o "seu" Gabriel. Levariam para o mundo a grande noticia.

O velhinho estava contente. Iria ficar ainda mais presente na história daquelas pessoas. O filho dos fundadores daquela cidade definitivamente marcaria seu nome na memória popular, ”sem falar a contribuição para o futuro”... E foi pensando em tudo aquilo, com os olhos luzindo de contentamento e espanto diante do equipamento do jornalista o senhor Gabriel ouviu:

-O senhor está pronto seu Gabriel?

O velhinho sorriu, sem dentes, olhos marejados pelo que iam fazer e disse:
-Pronto pra fazer história meu filho. Pra fazer história.

Nildo se aprumou todo, ficou bem sério e começou:

-Estamos aqui na cidade de Pirituba do norte divisa do nada com lugar algum, onde aconteceu "um acidente" fantástico, sobre isso o senhor Gabriel Oliveira Ramos que está aqui ao meu lado falará um pouco melhor. Seu Gabriel o senhor poderia contar pro Brasil todo o que houve por aqui?

-Claro, “nós não já tinha” combinado que eu ia contar?

-Sim, seu Gabriel. O Jornalista riu diante da sinceridade do outro.

-Então, pessoal o que sucedeu foi o seguinte. Como todo mundo deve saber Pirituba do Norte é uma cidade bem longe da capital do progresso, mas o caso foi que resolveram asfaltar a estrada principal. Foi uma felicidade só.

-O senhor poderia encurtar a história? Nosso tempo no ar é curto.

-O senhor quer que eu conte a história ou não?

Nildo, o jornalista, fez sinal pra que o homem continuasse a história.

-Como eu ia dizendo minha gente... O pessoal "tava" muito feliz com o asfalto... Mas no primeiro carro que passou em alta velocidade aconteceu um acidente horrível. Da metade da estrada pra lá, disse isso apontando pro local depois da passagem do carro, a cidade se elevou toda parecendo uma montanha. A terra lá tá escorregadia, o povo não pode descer pra cá, nem quer ficar lá
.
Nildo apontou a câmera para o local do "acidente".
-É algo surpreende e de proporções assustadoras o que aconteceu aqui, uma cidade quase toda sair do lugar. O que a população acha que pode ter sido a causa seu Gabriel? O movimento das placas tectônicas?

-Olhe o senhor me respeite. Sou um pai de família, nasci e me criei nessa cidade fundada por meus pais, não tenho nada a ver com “essas tal” de placa tectônicas não.

-Se acalme seu Gabriel. Estamos no ar.

-Que ar coisa nenhuma. No ar estão eles lá, olhe lá em cima no "arto", na montanha que aquele asfalto vagabundo formou.

sábado, 10 de março de 2012

Marcas de Batom


O tom ainda não é esse. Experimentaram cores e mais cores, até que a mais velha pegou a mais vibrante e disse:

-É essa. Essa que você usará.

A outra estava pálida diante dela, usava uma blusa branca, calçava chinelos simples, eram pobres, não pelos trajes, mas pelos fatos que vêm a seguir.

-Olhe pra mim e veja como deve fazer, como olhar, e se portar diante deles... Falando isso riu ridiculamente, soltando beijinhos em pleno ar.

A outra via tudo tristemente, entendia aquilo de forma ainda muito rudimentar, tinha então nove anos, a outra deveria ter uns 12 ou 13, contava dois abortos como triunfo daquela vida que a mais jovem criança viria a adentrar.

Saíram pelas ruas escuras e estreitas, tétricas figuras passavam por ali. Tinham medo, Sara a mais nova estava aterrorizada.

-De que tens medo? A mais velha sorriu ironizando, pois ela também sentia medo.

Outras mulheres circulavam pelo local, criaturas tão jovens estavam tão velhas e gastas como o vestido dourado esmaecido de uma delas, humanidade tenha um pouco de piedade dessas mulheres.

Uma criatura estrábica aproximou-se das nossas meninas, olhou-as com maldade, uma maldade suja e vil, se fosse possível prendê-lo naquele momento... Não havia polícia nas ruas, não ali.

-Aqui está ela. Como prometi. Disse o verme pra outra criatura asquerosa com a qual confabulava. Dizendo isso apontou pra Sara. Leve-a consigo e traga daqui uma hora, quero pagamento adiantado.

-Não pago.

-Ou paga ou não leva. Gritou puxando a arma pro outro.

“Amabilidades” acertadas levou a garota consigo. E o que ocorreu meu Deus, fechei os meus olhos pra não ver, tapei os ouvidos pra não lhes escutar os gritos, mas a minha consciência não me deixa largar a pena, preciso contar-lhes...Levou-a consigo arrastada pelos bracinhos finos, toda ela era uma tênue corda de trapezista, e ela estava a minutos da queda fatal.

A irmã mais velha, encolhida, a metros de distância daquilo, chorava baixinho, cabeça escondida entre as pernas, o corpinho tremia e ofegava impaciente. Não rezava, não gritava, apenas grunhia. Era um animal.

Cambaleante preparava-se pro salto mortal, pra algo completamente desconhecido. Olhava pra baixo e via o abismo diante de si, era tão alto, ela sentia tanto medo... Só o corpo dela estava ali, a sua alma vagueava diante daquele abismo que era a situação na qual se achava.

Clara, a mais velha, num lampejo de compaixão e lucidez correu até a cena dantesca prestes a consumar-se, atirou-se sobre o monstro que tentava cruelmente usar sua irmã como um dia fizeram com ela...E era tão cedo, foi há tanto tempo...Havia sido levada pelos próprios pais, era tão jovem, tão criança, tão...Já não pensava mais nada, via apenas a face do homem diante de si, lutando contra ele, numa luta desigual e infame, desferia-lhe mordidas, que ficavam como nódoas misturadas a batom barato na pele dele.

Os outros que também estavam na rua fugiram, uns pra não pagar a “corrida”, outras pra levar uma vantagem, por mínima que fosse. Ficaram apenas as duas ali contra ele... Mortas ambas de pancadas, por um monstro... Corpos estendidos numa rua qualquer... Eram e ainda são as marcas de batom... Marcas da prostituição.

Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração contra Crianças e Adolescentes – Disque 100
O Disque 100 funciona diariamente das 8h às 22h, inclusive nos fins de semana e feriados.
Por favor,não passe trotes.

quinta-feira, 1 de março de 2012

O Melhor Presente

Conto feito para Elen Alcântara:que tu,menina, continues a gostar das letras e da magia das palavras.


-Aqui está o teu presente filha.

A garota saltitante,correu e abraçou a bondosa senhora.Não era mais uma garota e sim uma mulher,e ali diante dela estava uma senhora mais perto do fim do que do começo da vida,mas o que importa?

Olhou o presente curiosa como se ainda fosse aquela menininha de outrora.Balançou a grande caixa,cheirou...Por fim rasgou o embrulho,tão bonito.

Dentro da caixa havia uma menor,que coisa!!Já havia visto essa cena antes,várias caixinhas,uma dentro da outra,como a esconder um precioso segredo,o que estaria ela reservando a si?Uma rosa?Uma jóia?

Continuou sua "jornada",a cada segundo mais curiosa.

A velha senhora ria contente.Os olhinhos de sua "criança" brilharam de contentamento ao ver o presente:

Um minúsculo quadrado.Seria um cubo mágico?

A mulher adivinhando-lhe os pensamentos disse:

-É um cubo mágico.

-A senhora sabe montar?

A outra deu uma gostosa gargalhada.

-Este é diferente.Clélia tomando o objeto das mãos da filha, abriu-o:

Eis que diante de ambas revelou-se o lindo cenário da poesia.

-O que quiseres de bom pra si e pro mundo,com o cubo criarás.Mas lembre-se:crie somente o bem.

Envolvidas pelo momento abraçaram-se."E a poesia daquele momento inundou suas vidas inteiras".

Abaixo Poesia de Drummond,O grande,O mestre de todos nós.

Gastei uma hora pensando um verso

que a pena não quer escrever.

No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo.

Ele está cá dentro

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda minha vida inteira.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Caixinha de Música


*Conto feito pra Lúrian Sodré:por sua paixão pela dança.O vídeo acima é da música Bandolins (Oswaldo Montenegro)



Adentrou o lotado teatro municipal, havia muitos conhecidos... E ele era um deles. Deu um passo pra frente como uma sílfide*, contemplou e cumprimentou a plateia. Estavam todos ansiosos pela estreia daquela noite, seria a consagração ou o desastre completo da nova primeira bailarina.


Vê-la dançar era como admirar a beleza da garça ou a elegância do cisne, e ali diante de um dos espectadores daquela cena maravilhosa algo inusitado ocorreu.

Diante dele uma velhinha muito sábia colocou-lhe nas mãos o pequeno objeto, ele aproximou-o dos olhos... Parecia incrédulo: de repente a bailarina olhou-o desafiadoramente, parecia cansada e triste. Admirado daquela cena o cavalheiro ousou num lance mágico dar corda a bailarina da caixinha de música, era o objeto que possuía nas mãos, para que ela voltasse a bailar, e fez-se também seu partner para que com ela pudesse dançar... Aquela valsa... Ela rodopiava em seus braços com graça e maestria, levava o próprio coração na ponta das sapatilhas.

*Sílfide: mulher esbelta, delicada.

Obs: Aqui há um misto de realidade e ficção onde os personagens dessa história ultrapassam o limite físico e ingressam no mundo mágico da arte, transcendendo os limites da realidade e do sonho.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Meia Dúzia



Era uma quinta diferente de todas as outras. Estavam reunidos ali pra julgá-lo. Era esse o seu trabalho mais arriscado. Mas qual razão havia pra que depois de tanto sucesso resolvesse ainda assim arriscar-se a criar uma história qual esta que segue? Respondeu apenas que era O Grande Desafio que havia proposto a si.

Olhos firmes e rasos estava pronto pras acusações e defesas daquela tarde.

O juiz entrou na sala carregando o grande livro: O Auto da Barca do Inferno. Excelentíssimo Gil Vicente parecia implacável. Logo atrás do meritíssimo entraram as testemunhas de acusação e de defesa, do lado direito do réu estava o júri popular. O promotor convulso esfregava as mãos. Teria início o julgamento mais importante de suas vidas.

Sentou-se e pediu que o júri e os demais fizessem o mesmo.

O réu jurou diante de todos com a mão sobre O Auto Da Barca do Inferno dizer a verdade, tão somente a verdade. Se houvesse Crime confessaria, se houvesse culpa haveria Castigo.

Começou a falar timidamente, contudo foi tomado pelas palavras, que vivas falavam por si de forma eloquente.

-Em minha defesa...Em minha defesa tenho a dizer que tudo quanto fiz durante esses 6 meses foi dedicar-me intensamente ao meu trabalho,buscar melhorá-lo,ter criticidade antes que outros como vocês o façam nesse julgamento.Sabia o tempo todo que esse dia chegaria,mas não pensei que fosse tão depressa e humilhante vir até aqui.

As testemunhas cochichavam entre si.Era uma verdadeira Paulicéia Desvairada ora a brincar ora a discutir o tema com seriedade.

-Rua dos Cataventos,Largo da Palma.Foi ali o local do crime?Perguntaram Quintana e Adonias Filho a um só tempo,inquirindo o réu.

-Não vejo Crime.Não cometi coisa alguma.Estou me sentindo tal qual as Vítimas do Preconceito.

-Ora,onde está o preconceito?Você ousa comparar-se a nós,diz-se grande escritor,contador de histórias mais fabulosas que As Reinações de Narizinho,e o preconceituoso sou eu?

-Então estou sendo acusado,julgado, por ousar como disse o senhor Monteiro Lobato escrever histórias.Desde quando isso é errado?

-Quando não nos ameaça.Olhe pra você uma criaturazinha medíocre,um reles escritor,desista do ofício meu caro,suas ideias não passam de simples Ilusões.Disse Padre Antônio Vieira começando com os Sermões.

-Alto lá padre!Desde quando vigário de paróquia pode se acreditar senhor do mundo?Bradou Erasmo de Roterdam furioso proferindo o seu Elogio da Loucura.

-Parece que ao menos um de vocês está decidido a ajudar em minha defesa.

-Assim Falou Zaraustra e assim falo também eu.Proferiu Erasmo e ajuntou essa:sou seu amigo,da mesma forma que Scliar era O Amigo de Castro Alves.Defenderei você com unhas e dentes.

-Obrigado.

Nesse instante alguns escritores saiam aos murros,rolavam pelo tapete da sala diante do juiz.

-Ordem no tribunal ou declararei suspenso o julgamento.Ordenou Vicente cravando os olhos fixamente em Gregório,o boca do inferno.Ele havia provocado agitação em massa.

-Guardarei as Memórias da Loucura de hoje.Falou Casmurro.Mas ainda assim não serão mais marcantes que as Memórias Póstumas de Brás Cubas...Ah,que memórias!

-Deixe de sandices Casmurro.Implorou Florbela tendo o coração contorcido,uma Charneca toda em Flor,fazia então a Lira de seus Vinte anos.Vinte anos de seiva e juventude...Espumas flutuantes.Era a data do seu Aniversário,o julgamento de um jovem escritor seria uma bela Mensagem?

Fernando Pessoa achegou-se ao réu e disse:

-Serei breve,usarei menos de Cinco Minutos do seu tempo.Respeito-o profundamente,contudo gostaria que pudesse entender a revolta deles:Vidas Secas,é isso que a juventude tem feito de grandes autores quais estes,mas eles são A Rosa do Povo,O Sentimento do Mundo.Gostaria que você os perdoasse.

-Quero somente a Reconciliação.Não farei da minha vida um Livro de Mágoas.

O relógio estava prestes a desferir a sua 12º badalada,Aqui Entre Nós havia O Grande Desafio,declarar Lindolfo culpado ou inocente.

O Juiz decidiu por bem ouvir O Veredito do povo:sozinho com eles confabulava o destino daquela criatura,enquanto esta do lado de fora, aguardava ansioso em Silêncio como fazem os Inocentes.

Após ouvir a todos Gil Vicente sentou-se,havia no Excelentíssimo juiz algo diferente, como se A Metamorfose tivesse se realizado por completo.Falando de forma improvisada passeava por toda a sala como se esta fosse Um Céu Numa Flor Silvestre.

Os Miseráveis do mundo trouxeram até nós um pobre homem que fia letras,tece palavras;influenciados por eles grandes escritores como os que se encontram aqui foram levados por intrigas a acusá-lo de sujar o passado glorioso deles ao dizer-se também um escritor.

-Mas,o amor é fogo que arde sem se ver excelência; e o referido cabra usando possível palavra do João Cabral de Melo Neto,não fala de amor.

-Amar,verbo intransitivo.O amor só precisa de si mesmo pra existir,sem complementos.E ele ama o que faz,e faz bem.Por favor,senhor juiz volte a dizer a sentença.Pediu Mário de Andrade.

-Continuando...Espero dessa vez não ser interrompido por ninguém.Alguns gostam de usar a expressão Amor Líquido em referência a relações fugazes e tênues.Porém durante toda a sessão de hoje pude perceber que a preocupação de vocês é desnecessária,aliviem vossos corações o autor aqui presente ama o que faz,pretende continuar escrevendo por longos anos e não pretende tomar o lugar de nenhum de vós,quer apenas exercer o talento que acredita ter,e a mim não cabe julgar se esse talento existe ou não,estou aqui apenas pra inocentá-lo do crime...Qual é mesmo o crime?Acredito que não havendo circustância que caracterize ação criminosa posso dar ao réu a sua Redenção.



 *Postagem comemorativa aos 6 meses do blog.
19 de Julho criação do Para Lelas e Verticais.



quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Vaso de Porcelana





Atirou o chapéu na mesa, sentou numa cadeira, arrotou aos quatro ventos pra quem quisesse ouvir e sentir aquele odor...


O garçom aproximou-se dele:

-Venha comigo, por favor, sua conduta não condiz com o estabelecimento.

-Não irei a lugar algum. Estou esperando alguém.

-Ou o senhor vem comigo ou chamo o gerente.

Nesse instante uma moça aproxima-se da mesa, cumprimenta a ambos, puxa a cadeira mais próxima e senta. É muito bela e discreta. Era disso em maior parte composta a sua beleza, da sua discrição.

O garçom olhou pro homem ainda sentado desajeitadamente uma última vez e saiu.

-Aqui está. Disse ela entregando uma pasta.

-Muito bem. Tirou uma caneta do bolso e rubricou nos locais indicados. Estava consumado.

Ela sorriu satisfeita. Um sorriso terno e doce, talvez maternal.

Levantou-se e saiu.

O homem ainda ficou ali por uma hora ou duas bebericando uma cerveja, a esta altura bem quente, deixou o dinheiro embaixo do copo e saiu. Ali não era ambiente pra uma criatura como ele, com a “esmerada” educação que tivera dos pais... Frequentar restaurantes finos tais aquele? Era a primeira vez. Era a primeira vez que sentia o verniz da sociedade, não se sentiu intimidado, mas estava contrafeito com o tratamento recebido, era contra seus princípios de educação frequentar lugares como o que acabara de deixar,foi por insistência de Isabel que se encontraram ali. Ficara órfão de mãe aos oito anos, o pai abandonou-a grávida, não o viu sequer uma vez em 30 anos de existência.

Na rua sentia o efeito das rubricas sobre o mundo. Contrato assinado. Rubricado em cada rodapé de páginas. Parecia feliz. Dentro de seus olhos brincavam as letrinhas do seu nome.

No outro ponto da cidade Isabel entrou no edifício, sempre cordial cumprimentou os funcionários da empresa. Ouvia-se a largas vozes por ali e por toda a parte o quanto ela era correta e querida entre os companheiros de trabalho, do maior ao menor, eram todos respeitados.

-Que mulher admirável, Jaime. Disse Pedro.

-Eu com uma mulher dessas estaria feito. Quem dera a jararaca lá de casa fosse tal qual ela.

Fechou a porta. Sentou. Folheou cada página com cuidado. Antunes havia cumprido sua parte no acordo.

-Antunes! Meu velho e bom Antunes. Era saudado na rua por amigos, conhecidos, aclamado com unanimidade.

-Olhe meu caro a melhor coisa que você fez foi vender a casa.

Enfim o negócio estava liquidado.

Com o dinheiro “ajudaria” inclusive a Isabel, ela que estava “ajudando-o” a ser um homem de classe. Aquele dinheiro pagaria as prestações que se acumulavam do hospital, os remédios e todo o resto. Antunes estava doente. Talvez morresse em breve, mas não estaria sozinho nem desamparado...Aquela mulher também seria paga, assim como o hospital e os remédios, pra acompanhá-lo em sua solidão.

Isabel era uma flor muito fina, mas não rara, advogada competente, escritório próprio e bem frequentado. Ajudaria de forma muitíssimo nobre aquele homem. Receberia centavo por centavo, cada minuto de companhia ou instrução de educação.

Os clientes eram cada vez mais frequentes... Em pouco tempo era procurada por outros Antunes, sua fama era imensa, a doce e amável mulher, educada, porcelana que ornava as salas, canto que enchia as manhãs, aquela que provocava suspiros e invejas...Ninguém suspeitava...Uma grande mulher ou uma grande ratazana?

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Vende-se Cão.Compra-se Dono.

Conto livremente inspirado na foto da cadelinha de Onà Nunes.Acompanhado de um trecho do Poeta Victor Hugo.






"Desejo outrossim, que você tenha dinheiro, porque é preciso ser prático. E que pelo menos uma vez por ano coloque um pouco dele na sua frente e diga "Isso é meu", só para que fique bem claro quem é o dono de quem". (Victor Hugo).




Vende-se cão. Compra-se dono.


A placa era clara a intenção também. O mundo movimenta-se de acordo com a lei da oferta e da procura. Há os que querem comprar e os querem vender ou algo, alguém, quiçá a si mesmos. Ali não era diferente. Ele precisava de um cão. O animal de um dono.


Feitos os ajustes necessários para a aquisição de ambos poderiam conviver debaixo do mesmo teto como iguais. Agora veríamos quem era o dono de quem. O verdadeiro animal e o verdadeiro homem.


-Juca. Gritou Cláudio, traga os jornais.


O animal atendeu a ordem do homem. Trouxe os jornais, posteriormente os sapatos, a sacola de pães... E uma lista infindável de pedidos.


Juquinha olhava Cláudio com amor, um amor ferido e humilhado.

-Ai, que preguiça! Suspirou fundo e colocou os pés na mesinha da sala, ligou a televisão e começou a assistir o clássico das tardes de domingo: o futebol.

-Juca, traga a cerveja.

E lá ia o cãozinho. Um empregado doméstico sem remuneração.

Intervalo do jogo começaram as propagandas aquilo despertou no homem um desejo que estava latente há anos. Ganhar dinheiro,enriquecer. Custasse o que fosse necessário.

-Vou ganhar dinheiro contigo. Repetia pro animal. Vou te ensinar a falar.

Juca não entendia bem aquilo. Desde quando animais falam? Ele pensava, entendia, um entendimento ainda bem rudimentar, mas nada que fosse comparado a aprender a falar, não era humano. Ou o dono que era um animal?

Estava irritado. Que criatura burra. Onde estariam os seus neurônios? Não pronunciava palavra.

Eis que um dia foi surpreendido. O cão aproximou-se dele. Notas na boca disse:

-O dinheiro é meu.

Fugiu com toda a reserva de dinheiro do dono. Havia aprendido.