segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O Nome era Rosa






-Interessante essa história.


-Foi bem mais que isso.

-Conta mais uma vez pra que eu possa guardar melhor.

-Num domingo bem cedinho atravessei a rua, comprei jornais e pão. Na volta ela estava lá.

-Como aconteceu isso? Sempre me faço essa pergunta quando você conta essa história.

-Eu não sei, ela simplesmente estava lá como se sempre houvesse existido: a flor do Drummond, "A Flor e a Náusea", Só não havia a náusea aqui. Pus-me a contemplá-la: era vermelha e pequena, mas ocupava toda minha atenção; sorri satisfeito pra mim mesmo e depois para ela... Voltaria mais tarde depois do almoço - ela ainda estaria lá ou seria esmagada pelos carros?

Milagrosamente ela estava e continuou ali no asfalto, sem que ninguém ousasse arrancá-la, crescia debaixo de minhas vistas e cada vez mais com os meus cuidados.

-Você voltava lá todos os dias?

-Claro! Por conta de que deixaria de voltar? Não só voltei nos dias e meses seguintes como passei a regar e conversar com ela, fui seu primeiro amigo, mas não o único; pessoas de vários cantos da cidade vinham vê-la. Naquele tempo eu devia contar uns 20 ou 22 anos, guardava comigo grandes sonhos e aspirações.

Os anos passaram me fiz homem e chefe de família. Minha mulher ciumenta de meu zelo pela flor quis mudar-se, relutei. Contudo cedi quando ela ameaçou cortar a rosa, então Patrimônio Nacional.

Com minha ida pra outra cidade murchei por completo e ela também... Perdemos o viço, veio a juventude - a madureza.

Alguns anos se passaram. Fiquei viúvo, com o fim do luto vendi a casa e retornei para a cidade.

Pus a melhor "roupa", meu coração saudoso; levei o regador, agora cuidaria dela como antes, conversaríamos tantas coisas, há anos não conversávamos...

Porém ao ver-me a minha flor e o meu amor recuperaram o viço, a cor...

Ali diante de mim ela tirou os pés do solo, veio ao meu encontro e me abraçou.

Estamos casados até hoje.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Conto de Natal


Não havia sinal do Natal ali; procurei os sapatos debaixo da árvore, não havia árvore. Senti fome e intentei cear com eles, a mesa estava deserta. Senti frio, não havia cobertas. Contrariando a tudo isto começava a sentir em meu peito raios de felicidade, uma esperança estranha tomava conta de mim... A hora estava cada vez mais próxima.

Com muito cuidado me debrucei na janela roída pelos cupins, lá no céu bem distante de mim, de nós, e de toda aquela miséria brilhava uma estrela, a maior de todas elas brilhava no céu, ela ofuscou minha vista, meus olhos aos poucos se encheram de lágrimas... Por entre o feixe luminoso vi quando ele se aproximava.

O trenó e as renas eram os mesmos das histórias infantis... Não havia saco de Papai Noel, nem presentes, ele trazia consigo três criaturinhas maravilhosas.

Desceram do trenó, a viagem estava no fim pra que pudessem dar inicio a tantas outras...

Pra meu espanto entraram na humilde habitação na qual eu estava.

-Somos tão feios pra que te assustemos assim?

Mal podia olhá-los tal a luz e a pureza que emanava de seus corpos.

Estavam diante de mim: José, Maria, e o menino Jesus embalado em seus braços.

O Noel sorriu docemente, contemplei aqueles olhos lindos e negros com satisfação, era o único deles que eu conseguia enxergar perfeitamente, sem ofuscamento da vista. Ele estendeu as mãos pra mim e pediu pra que eu as tocasse, fiz o que ele pediu... Eram cheias de amor e de paz. Uma felicidade sem sombras tomou conta do ambiente. Juntos tomamos a ceia aquela noite. Vi as luzes de natal entrarem naquela casa humilde, mais potentes e maviosas do que todas as luzes do mundo eram as luzes dos olhos daquelas pessoas, elas refletiam o amor.

Após a ceia, em silêncio, levantaram-se, pareciam prontos pra partir.

Jesus, ainda rebento, no colo materno olhou pra mim e disse:

-Estamos aqui hoje, filho, por que tu ousaste penetrar este casebre...Procurar essa família.

-Não havia ninguém...

-Foram tolhidos pelo frio e pela fome. Mas o PAI os restituiu em sua graça, eu te digo em verdade, muito em breve estarei com eles no reino dos céus. Quanto a ti...A partir de hoje farei morada em teu lar.

Chamou o Papai Noel e pediu pra que fossem embora, em algum lugar, havia muita chaga a ser extirpada, pessoas clamando por compaixão, gritos repletos de fomes e sedes... ELE estaria lá pra saciá-los e dessedentá-los.

Manhã seguinte acordei entre as ruínas daquela velha casa... Não havia sinal da estada daqueles indivíduos naquele casebre... Contudo dentro de mim, havia uma vela queimando, repleta de paz...Era a certeza que eu precisava, eles estiveram comigo e eu com eles.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

A Batalha Final - Vampiros

Não esperem continuação,nem uma história comum sobre vampiros.

A rivalidade entre eles (os vampiros) existia desde os tempos imemoriais...Envolto em sua capa,retirou a espada da bainha,cravou na pedra,naquele mesmo local séculos mais tarde Rei Arthur tomou aquela espada por sua.Foi ali que ocorreu essa história.

Disputavam a primazia daquela linhagem de vampiros: Alucard,Vlad Dracull e Drácula; cada um deles dizia aos aprendizes de grandes vampiros ser superior aos outros dois, e ter dado origem a família mais importante do mundo.Conheci os três,eram sanguinários,impiedosos;portadores de uma arrogância e suposta superioridade asquerosa,exímios caçadores...Algumas vítimas simplesmente não sobreviviam.Há um limite de sangue a ser sugado das vítimas,ultrapassado o limite elas morrem,não viram vampiros,eles não desconheciam essa regra,contudo a sanguinolência deles estava dificultando a sobrevivência e continuidade daquela família.Foi nesse momento que um deles sugeriu uma batalha,uma batalha decisiva,só um deles sairia vivo.

Os pares de asas furiosas cortavam a noite,os demais vampiros assistiam a cena ansiosos,qual deles saria vencedor? Haveria um?Os mais ousados faziam suas apostas.Litros de sangue ao ganhador da aposta,tudo garantido.Quanto ao vencedor da batalha? Não pairava dúvida que ele reinaria de forma suprema sobre todos os outros,sobre suas asas e caninos afiados estaria o futuro do clã.

O círculo de fogo estava desenhado no chão,haviam chegado,seria a última vez que estariam juntos,os mortos-vivos.Dentes em fúria começa o combate.Vlad,o mais temido até então,abre suas asas,alça voo em direção ao Drácula, desferindo seu ataque,os dois lutavam em pleno ar,espadas ruidosas brigavam entre si.Alucard que até então assistia,juntou-se aos outros dois,ficara ali embaixo,em terra observando aquele duelo pra saber qual deles sairia vencedor,Drácula estava ferido no ombro,"juntaria-se"ao combate ao lado de Vlad,pra que o outro fosse eliminado o mais rápido possível.Agora tínhamos um dois contra um.

Tentou defender-se enquanto possível,contudo causou apenas alguns arranhões em Alucard e Vlad.Em pouco tempo de combate Drácula,mortalmente ferido,tombou sem sentidos no meio do fogo.

As criaturas riram diabolicamente vendo a outra queimar,só um vampiro é capaz de matar outro daquela maneira, os demais,os reles mortais precisam de estacas,balas de prata e acessórios afins.

-Vai desistir?Zombou Vlad.

-Só com você morto.Retrucou Alucard.

Nesse instante,o jovem vampiro retirou a mortalha de linho mostrando a cruz dourada em seu peito.

O velho vampiro sem entender muito bem a situação disse:

-Resolveu degenerar?

-Não me reconhece?

-Não.

-Fui o primeiro que você mordeu.

-Então está resolvido.Se até você admite que a linhagem foi fundada por mim quem seria ousado o suficiente pra tentar desmentir agora?

Alucard sacou a espada de prata,Vlad colocou-se na defensiva,dando um passo pra trás,abriu as garras e as asas,o outro aproveitando-se disso encurralou Vlad de encontro ao fogo,ainda houve tentativa de reação por parte dele:apertando-lhe um dos braços quase trincou os ossos do Drácula,já que pra os desavisados,Alucard também é um Drácula.Este rindo freneticamente como era de seu costume enterrou a espada de prata no peito do velho vampiro.

Quedado ao chão,morto,estava Vlad diante de sua primeira vítima...Um caçador de vampiros.

 

 

*Conto feito para Caio César Gravata e Mauro Sena. Dois grandes vampiros.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Senhoras Sinceras






-Sou muito sincera Jurema. A sinceridade é meu lema.


-Marli, você sincera? Desde quando?


-Desde sempre ora bolas. Desde quando nasci.

-Já está mentindo!

Marli olhou a amiga com raiva. Em tantos anos de amizade, amizade sincera até ali, como Jurema ousara desconfiar dela daquela maneira, acusá-la sem motivo?

-Não se enerve dessa maneira querida... Disse Jurema.

-Querida? Assim que você paga mais de 30 anos de amizade?

-Olha, agradeço sua amizade, seu companheirismo esses anos todos, mas... Não quero parecer forçada, contudo, sincera mesmo amiga, você não é.

-E, ainda vem com essa!!Vocês estão vendo... Estão todos de prova.

-Todos quem minha velha? Só estamos nós duas aqui no terraço.

-Você não vê? Não escuta os rumorejos das falas dos que nos leem? As risadas? As entortadas de cara que estão dando ao "nos verem"?

-Já que é assim façamos um trato. Propôs Jurema.

-Eu aceito.

-Marli... Você nem sabe o que é...

-Nem preciso.

Marli, a sincera, segundo as próprias palavras e Jurema a amiga desconfiada, como nós podemos notar, fizeram um trato; juntas na varanda prometem uma pra outra a partir daquele momento só falarem a verdade.

Jurema exige da amiga um juramento especial...

-Que absurdo é esse Jurema?

-Ou é isso ou nada.

-Está feito. Jurou diante daquela criatura ser uma mulher sincera. Jamais mentiu ou mentiria.

Hoje entrei com meus olhos e corpo invisível de narrador que quase tudo sabe na casa de ambas....Meu Deus! E o que vi?Marli,a dita dona da sinceridade mundial escondia bolinhos de chuva nos bolsos do avental, driblando o diabetes como ela só seria capaz de confessar pra si mesma, já aos outros? Nunca houve na Terra alguém que seguisse a dieta recomendada tão à risca.

Na casa de Jurema não foi diferente. A mentira era menor, mas ainda assim mentira...Joaquim achegou-se perto da mulher e perguntou:

-Jurema, o café está pronto?

-Oh, meu velho amanheci doente. As varizes estão atacadas. Doem...

-Sente aí. Vou buscar o jantar.

Logo o marido saiu, era uma quarta... Todos sabem dia de jogo, mas também e infalivelmente dia de novela. Como ia dizendo tão logo o marido saiu a mulher trocou o canal e tocou a assistir a novela.

Uma semana se passou. Duas. Nada. Nenhuma delas descobria a mentira da outra.

Olharam-se longamente. Uma reverenciou a seriedade e dignidade da outra. O pacto havia sido levado a sério. Eram sinceras.

Haviam jurado a Gepeto que não eram mentirosas. Pinóquio revoltado assistiu aquela cena maquinando algo pra vingar-se das duas; nem ele escapava das mentiras, elas deveriam escapar? O que fazer?

Lembrou-se do Saci. Pediu ajuda ao “mago bruxo” das florestas.

No dia seguinte as amigas viram-se envergonhadas. Viraram dois bonecos de madeira.

domingo, 20 de novembro de 2011

Teorias da Conspiração



Estava atrasada. Cinco minutos, mas estava. Naquela manhã havia acordado bem cedo, nenhum incidente exceto a demora dentro do transporte público, uma vergonha; uma hora de seu bairro até o centro. Aquele automóvel estava em petição de miséria, uma porta só, janelas com ventilação apenas na parte superior, os veículos eram em número insuficiente pra atender a demanda populacional da cidade. Desceu do ônibus lotado com dificuldade. Era esperada com ansiedade por alguém. O centro estava cheio de gente, era véspera do feriado de dia dos pais, tentava em vão atravessar a avenida mais movimentada da cidade num dia como aquele.
E foram várias tentativas. Agora vai. Pensou ela, quando foi quase atropelada por uma bicicleta, eram mais de 30 mil naquele centro urbano, e estavam todas ali, as motos também. Parecia uma confraternização de veículos.
Impaciente roía as unhas. Sem ter o que fazer senão esperar o amenizar do trânsito ficou a olhar a vitrine da loja mais próxima:
-Que coisa é aquela ali? Apontou espantada.
-A imagem do caos.
As pessoas, animalizadas pela fome, policia em greve, saqueavam um supermercado.
-Não sabia que a policia estava em greve. Comentou com uma senhora ao lado que como ela assistia atônita aquela cena dantesca.
-Moça, você não sabe é de nada... Os jornais, os meios de comunicação em geral estão suprimindo as informações, passando "coordenadas erradas".
-Como assim?
-Você não vê? Essa história de comércio abeto até mais tarde em véspera de feriado, é pra omitir a greve da policia, veja se alguém sabia disso? Se alguém comentou? Eu sabia. Vim aqui conferir a tragédia, meu esposo é policial e me confidenciou tudo. Estão todos armando contra nós. Todos os que possuem poder, os pequenos, os grandes, só de poder que eles precisam, e só do poder se servem pra nos manipular... Isso tudo aqui é pra nos por uns contra os outros.
Estava tonta com aquilo. Os neurônios fervilhavam.
A mulher continuou:
-Hoje pela manhã ainda cedo, os agentes da prefeitura, os fiscais e guardas municipais invadiram as favelas, as casas, atearam fogo em tudo. Por isso essa confusão toda aqui.
Clara afastou-se daquela criatura. Não poderia ser verdade. Esfregou bem os olhos cansados daquela multidão toda e apenas viu dentro da loja pessoas comprando, outras vendendo. Não era o caos. Não ainda.
Do outro lado da avenida ele esperava. Foram tantas as palavras daquela senhora que nem lembrava mais dele, porém Cristiano estava ali, houvesse ou não uma teoria da conspiração, ele ali estava... O homem de sobrancelhas grossas, arqueadas, bem feitas, uma escultura sem termo, agastado pela demorava dela, ainda assim esperava. Atravessou a rua.
Juntos, ela e o homem foram embora, não sei pra onde, sei apenas que fugiram dos conspiradores.



terça-feira, 15 de novembro de 2011

Fotos.Fatos das Ruas.



Olhos fechados, perigo imenso, solto na rua o cão ladrava. Os passantes apavorados, esquivos, xingavam. Era um coisa ruim. Comia dedos, devorava almas. Estava doente. A baba escorria abundantemente ao canto da boca, escancarada, ofegante, cheia de dentes ferozes ou inofensivos. Deitou-se num canteiro de cactos, espinhosos como ele. Estava insone ,ferido, longe de casa.

O frio era imenso. As gotas de orvalho caiam em seu corpo franzino, delicado. Um contraste perfeito com sua alardeada agressividade.

-Bambino! Bambino!

As notas familiares trouxeram-lhe paz... Em minutos estaria em casa. Caminha quente. Parecia humano... Tantos mimos... As cobertas macias, comida agradável, bons donos, fiéis e cordatos. Olhou pra eles, um olhar difuso... Achegou-se até a janela. A chuva continuava e cães como ele estariam lá fora. Como ele não, ele tivera mais sorte. Tinha um lar. Aos cães abandonados ele volveu seus olhos lúcidos que ao encontrarem aqueles embotados pelas maldades do mundo, verteram lágrimas de dor, uma ainda maior do que a que sofrera na rua. A todo animal, a toda criança abandonada... Pede-se apenas LAR.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Ligação - Parte II (Final)


A carta iniciava-se com uma declaração reveladora:

"Amigo,matei seu pai...E agora o que faço?"

O pai estava mesmo morto?Pediu licença e desligou o telefone.Não continuou a ler a carta,depositou-a na mesinha e discou pros parentes.

-Não.Sua tia não está.Não sei se seu pai está com ela.

Os outros não atenderam.Passou a mão nos cabelos,cruzou as pernas.Segurou o envelope.

O telefone tocou novamente.Não atendeu.As ligações não paravam,tirou o telefone da tomada e ainda assim ouvia os seus apelos.Tomou coragem e começou a ler,sem interrupções.

Logo após a primeira revelação vieram outras:

Éramos amigos,eu e ele.Sou um assassino como declarei logo na linha acima.Estou atormentado,não pense que matei o seu pai...Matei o pai de outrem.Mas desejo saber...E se fosse o seu?Você faria o quê?Mereço perdão?

Fechou a o envelope e sentiu um grande alivio,ao menos seu pai estava vivo,o cadáver pertencia a outra pessoa.Não recebeu mais ligações depois daquele dia.

sábado, 5 de novembro de 2011

Arsênico com Amor

Casaram ainda muito jovens.Prometeram diante de um emissário de Deus que aquela união seria eterna.A cerimônia foi muito bonita,muitos convidados...Roupas elegantes,na festa comida farta,nos dias seguintes as coisas não mudaram;ambos atenciosos um para com o outro.Era primavera.

Moravam numa casa confortável,não eram ricos,não tinham empregados;dividiam as tarefas domésticas.Aos poucos estavam descobrindo-se.No príncipio das descobertas Antônia percebeu que o marido,bom,como direi isso?Direi da forma que ela gostaria que eu dissesse então...."Roncava que nem um porco", e mais impressionante era não ter percebido isso antes,por que só agora?Melhor não dar tanta importância a um fato como esse.Lúcio por sua vez começou a achar a esposa um tanto quanto desleixada,não tomava banho com a mesma frequência de outrora,já não se vestia com o esmero dos primeiros tempos; de qualquer forma era de se estranhar...Em pleno verão alguém tomar menos banho que o normal...Mas havia amor entre eles...Devia haver,do contrário por conta de que casariam tão cedo?Tantas pessoas pra conhecer,um mundo inteiro pra desvendar...Escolheram um ao outro.

-O café está frio.

Olhou pra ele com uma pontinha de raiva,deformando os lábios finos e delicados;naquela altura eles pareciam uma cobra ensaiando o bote.Preferiu abortar.

Quem era aquela mulher?Tão hostil,venenosa.Pensou ele vendo a cena a seguir:

Os lábios de serpente puseram-se arqueados diante dele,preparados pra inocular o veneno cruel...Morreria?

-Não temos empregada.Somos somente eu e você.Não gostou?Prepare outro.

Antônia encostou-se na pia,endireitou as mangas da camisa.O frio estava chegando,aos poucos, mas estava;naquela manhã retirou as roupas do armário,lavou,passou,estariam sem mofo pra quando o inverno chegasse...Pra dali um mês ou dois.Já era possível ouvir e ver seus chamados.

Os dias de felicidade comum eram cada vez mais raros.A chuva caia grossa no telhado.O vento entrava até por debaixo da porta.O marido deitado na cama lia o conto: "O Homem da Bolha",a esposa furiosa pela pouca atenção dos últimos meses,arranca-lhe o texto das mãos,puxou também os cobertores e disse:

-Não quero nada seu em minha casa.Há meses aguento seu ronco,sua falta de tempo e sobra de comodismo.

-Você não se enxerga?Olhe-se num espelho.Quem era e quem é você agora?Uma imunda que mal se depila,banho então...Melhor eu me calar,acho que o odor do ambiente fala mais do que qualquer palavra minha.

-Acabou.

-E,só agora Antônia que você notou isso?

-Não,eu notei isso da primeira vez que te trai ainda na lua de mel.

domingo, 30 de outubro de 2011

Ligação Parte I

Parado diante da caixa de correios tentava memorizar o próprio cep...Tomou coragem e saiu.Números repetidos incessantemente na mente,um grande medo de perdê-los.Num canto seguro da estrada,esgueirou-se por entre os ramos duma árvore desconhecida,sacou o celular e discou.Do outro lado da linha uma voz sonolenta:

-Aaalô.Atendendo a ligação.

-Aqui está o que me pediu: 4456 785

-O cep?

-Isso mesmo do jeito que o senhor pediu...Agora pode ir a uma agência e endereçar a carta pra mim?

-O que diz a carta?

-O senhor não leu...Percebo que não leu...

-Olha rapaz...Foi interrompido pela outra voz ao telefone.

-Lembra da primeira vez que te liguei e o por quê?

-Você disse ter encontrado meu número na lista telefônica.

-Isso!Precisava de alguém pra enviar o que te pedi.

-O que até hoje me intriga é que como entre tantos nomes você escolheu logo o meu.

-Temos o mesmo sobrenome,poderíamos ser parentes,isso pesou a seu favor.

-Tudo bem só falta o seu endereço.

-Rua dos Mártires nº6,Ilha do meio.

-Pra quem irá mandar a carta?

Aquele movimento seria decisivo.Enviar cartas era algo muito caro,por isso decidiu pedir ajuda a alguém,e justo quando precisavam enviar não conseguia dizer o nome do remetente.

-Não sabe pra quem enviar,não é?

-Não.

-Um tipo de carta como a sua não é comum.Dizendo melhor...A maioria das pessoas sabe pra quem escreveu a carta,mas você não parece fazer parte do grupo.

O outro baixou a cabeça.Encolheu os ombros como se pudesse ser visto pelo interlocutor.Com a voz ainda fraca,indecisa,retrucou:

-Envie pra mim mesmo.

-Como assim?

-Preciso do meu perdão.Tenho estado muito aflito.Quem sabe lendo minha confissão eu não me absolva?

-Não seria mais fácil escrever e apenas ler?

-Faça o seguinte:leia,faça suas anotações junto as minhas queixas contra mim e ponha no endereço que te dei.

Sozinho o interlocutor ficou pensativo...Lia,relia a carta e não encontrava palavras a dizer a um homem como aquele,cada palavra lida era um golpe desferido nele também.

"Amigo,matei seu pai...E agora o que faço?"

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Quem vai ler?


Que bagunça! A chave caindo da mesinha, o lápis... Sim, mas onde deixei o lápis? Como escrever isto? Recorrerei ao computador! Pronto estou salvo.

-Mano você poderia me dar licença... Preciso escrever algo importante.

Ele não me ouviu, continuou naquele joguinho idiota. Arranquei a tomada do estabilizador e pifei a máquina. Agora nem eu nem ele.

-Justo quando que eu estava passando de fase! Sei não, tu só tem caraminhola na cabeça, fica escrevendo essas sandices, quem vai ler?

-Você que não é. Aposto que nem ler direito sabe.

Saiu cuspindo fogo. E agora estava sem lápis ou computador; ideias martelando na mente, prontas pra serem escritas, gritavam;

-Vocês podem calar um pouco a boca?

Elas não respondiam as minhas indagações, ficavam com o mesmo disco arranhado, o mesmo principio, meio e fim de um conto que pelo visto não seria escrito. Fiquei ali cismando na madrugada fria de junho...Como por minhas palavras em ação? Estavam agitadas, irritadas e eu com cada vez mais sono.

-Mano! Usa o gravador...

Parecia uma boa ideia.

Gravador em punho, as palavras entalaram na garganta, impedidas por algum gênio ruim.

-E agora? Seria seu fim antes mesmo do principio? Seria meu primeiro conto no blog.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Dedicatória


Iremos até onde for preciso. Segurou minha mãozinha pequena e me ensinou o caminho.

Abri minha palma e encostei na dela;21 cm dizia ela,21cm de palmo bem estendido e cuidado. Sobre a égide daquela mulher a criança cresceu, fez-se homem, e ela, velha, bem idosa contemplava aquelas garras dóceis, gentis deslizando mansinho em sua face, estacando de quando em vez pra acariciar e admirar uma ruga.

-Essa aqui como surgiu?

-Não lembro... Faz tantos anos.

-E, esta?

-Quem é você meu jovem?

Não conseguiu responder. As próprias lembranças falavam por ambos ,gritavam, urravam. Mirou bem aquela senhora... Fundo nos olhos adentrou sua alma.

-Lembro-me de você. Tão bonito. É mesmo você não é?

Por um instante senti como se ela submergisse das profundezas do lago... Queria admirá-la boiando nas águas, desfilando seus lindos cabelos prateados.Ouvi apenas:

-Quem é você?

-Meu nome não importa. Peguei sua mão como fazia antigamente e estendi sobre a minha. Vi as lágrimas rolarem em profusão dos seus olhos meigos. Ela morreu diante de mim. Fomos até onde foi preciso.

Daquelas lágrimas... Nunca esquecerei.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O Nascimento de Dalva.A Estrela.O Mito.


Admiravam a beleza da ampulheta. Do tempo que escorria ali, indo embora a cada segundo, a cada milésimo. Era manhã nascente, o Sol em todo seu esplendor mostrava seus raios fulgurantes, dourados, qual rica coroa de cabelos cor de ouro. Os primeiros raios tímidos temiam afugentar a quem esperava, a quem esperava com ardor milenar; mas a ânsia de tê-la consigo era demasiadamente grande pra que se calasse, ali do céu podia vê-la, a Lua; Ela dormia qual água calma de rio, serena, descuidada de si, de sua beleza e volúpia. Tentou chamá-la, foi em vão. Estava surda, seus clamores eram inaudíveis.

Taiana em seu desespero cutucou a irmã que observava do lado diametralmente oposto. O Sol em sua grande fúria e orgulho imenso, resolvera vingar-se dos humanos, mandou um calor abrasador à Terra, pra que queimasse tudo que havia, qualquer sentimento que nos irmanasse.

Verônica, a irmã mais moça, não menos assustada que a outra, espreitava uma cena... O tempo corria depressa entre seus dedos...O Rei das Alvoradas morria diante dela, pra que a Rainha da Noite pudesse ondear seus cabelos prateados pelos ares, através das estrelas ávidas por seus beijos. Como era bela! Em meio a constelações sem fim, ela reinava, comandava tudo com sua doçura e afabilidade; estava triste, saudosa, este sentimento foi tomando-a por completo, tornando-a cada vez mais cheia, exuberante, diáfana; ver-se ali diante do universo inteiro de estrelas sem a estrela Master, inundou-a de intensa melancolia, depressão profunda, seus olhos encheram-se de lágrimas, e chorou, chorou o mais belo pranto... Deus vendo isso teve pena. Olhou-a compassivo, estendeu as mãos em concha e aparou as lágrimas, uma a uma, juntou-as no seu seio divino e paternal... Tirou dali a estrela Dalva; filha do sofrimento e do amor.

Admirando a beleza de seu amor Ela, cansada da vigília da véspera, estende-se no leito, não sem antes ousar estender os braços pra Ele, e tocá-lo com a ponta dos dedos.Era sempre em vão.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Prisão

-Estamos decepcionados com você.
O funcionário ficou pálido,cabisbaixo,tentou articular alguma fala,mas as palavras ficaram presas,certamente infrigiriam uma lei qualquer da empresa ou do Estado - Nação.
O diretor continuou:
-Está preso.Segurem-no.
Igor debatia-se contra os homens que o agarraram violentamente.Um deles socou seu estômago enquanto o outro ria freneticamente,uma espuminha diabólica escorrendo do canto da boca.
Acordou com o corpo doído,algumas manchas de sangue no chão denunciavam que estava ferido,a consciência que tinha de si mesmo naquele instante era muito pequena;não saberia dizer em qual local era o ferimento,e se havia mesmo um.Não lembrava de nada.Era incapaz de relatar onde estava.
-Fogo!Fogo!Gritou na tentativa de ser ouvido.
Viu um espectro de homem animalesco aproximando-se.Excessivamente alto e forte,olhar duro e cruel...Os olhos dançavam diante dele uma dança descompassada e desafiadora,enfim cansados do baile,fixaram-se nele.
-Espero que tenha aprendido a lição,não toleramos gente como você conosco.
Estava tudo ainda muito desordenado na mente do rapaz...Como assim gente como ele?
-Não se preocupe.Faça sua parte e tudo ficará bem.
-Não entendo.Balbuciou fracamente.
Ganhou um bofetão.
-Espero que isso ajude sua mente de noz a entender as coisas.
Comecei a lembrar.Queriam que eu confessasse algum crime ou falcatrua.Ele parecia notar que eu havia rememorado o assunto.
-Ficamos por aqui por enquanto.
Estava com sede e fome,tentou ficar em pé,nesse momento percebeu-se totalmente amarrado.Agora sim a situação apresentara-se diante dele tal como era.
-O que querem que eu diga?
-Tudo.
-Tudo o quê?
-Você não sabe?Não foi esperto o suficiente pra bisbilhotar?Agora também seja na hora de assumir a culpa.
-Não fiz nada,todos sabem.
-Todos quem?Ora,ora,faz um favor pra mim?Só abra a boca quando for pra confessar ou te apago aqui mesmo.
-Preciso de água e comida.Não posso falar assim.
-Estou diante de um glutão?Sua vida está em risco e você só pensa em comida?Esperava mais de você,Igor;parecia tão inteligente...Agora vejo o porco que és.
O homem confessou tudo,havia algo maior que sua honra ou fome ali.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Pandora - Parte II (Final)

Rosto em brasa, não fui capaz de responder.
-Gostaria, amigo, que esquecesse as mulheres dessa casa, são todas minhas.
-Não poderá mantê-las pra sempre junto de si.
-Ao menos suas não serão;isso já é um alivio pra um pai.
-Estou avisado. Fecharei meus olhos pra elas.
-Cegue-os se for necessário.
Tantas prevenções contra mim, um amigo de todos da casa... Aquela conversa quebrou o meu humor que estava sendo testado desde a minha chegada.Passei em frente ao quarto de Pandora,era necessário e impossível não fazê-lo;os quartos dos filhos de Reginaldo ficavam no corredor,dispostos da seguinte maneira:o quarto de Nívea era o maior e mais espaçoso,também o primeiro,no meio ficava o de Pandora,sempre com suas caixas na penteadeira,no final o do rapaz,era ao lado dele que eu dormia.Não possuíam quartos pra hóspedes,e no final das contas,eu não era um.
Parei em frente à porta entreaberta do quarto do meio,observando-a,parecia morta.Entrei.Naquele momento começava a quebrar a promessa feita ao meu amigo.
-Feche a porta. Disse ela.
-Temos algum assunto importante a ser tratado?
-Você parece acreditar que sim.
-Achei que estava morta.
-Mortos não caminham como eu. Aproximou-se, me beijando. Os lábios daquela jovem mulher colaram-se aos meus de uma forma convulsa.
-Pare.
-Foi pra isso que veio aqui.
-Achei que estava morta.
-Que truque sem sentido. Mentindo pra Pandora?
-A que possui todos os dons...
-A própria.
-A mulher que abriu a caixa e soltou todos os males sobre a terra. Você é ruim.
Abanou a cabeça. Mordiscou a boca.
-Se eu abrir a caixa todos os males se abaterão sobre mim.
-A esperança não seria uma compensação?
-Nem sobre essa égide eu estaria a salvo.
-Vá embora. Meu pai te dará o que deseja. És livre pra desposar Nívea ou pra namorá-la,como queira.
-Não entendo.
-Pandora meu caro, Pandora... Medite sobre ela.

sábado, 10 de setembro de 2011

Pandora - Parte I

Entregou-me a mala. Estava pesada. Era preta com listrinhas alaranjadas, bem fininhas contrastando com seu peso e tamanho. Desci no ponto errado, tive que ir caminhando por um bom tempo até chegar a casa.Entrei sem bater como era de costume,não havia ninguém;espiei a construção de forma minuciosa,portas,janelas,assoalho,louça,tudo quanto havia ali havia passado por meu exame,aprovação era outra coisa.
-Seja bem vindo. Era o dono saudando-me de forma cordial.
-Obrigado. Estou em casa.
-Venha ver a mulher e os meninos. Disse levando-me pra fora de um dos cômodos.
Estavam muito bonitas as filhas do meu camarada. O rapaz ensaiava um bigode ainda ralo, voz indecisa, mas seria um belo e bom homem se saísse ao pai.
Fiquei detido olhando aquelas duas moças belas:
Uma era negra, a outra branca; fruto da miscigenação.Ninguém diria que eram irmãs...Eu afirmo que eram por que compartilhava da intimidade da família.
Uma delas jogou-me um beijo. Estava muito faceira, contava então 17 anos. Vi quando a mais moça corou como se ela própria houvesse atirado o beijo... Seriam cúmplices?
-Não se meta com minhas filhas. Disse meu velho compadre como se estivesse lendo meus pensamentos a despeito das duas.
Timidamente aproximaram-se de nós,a mais velha abraçou-me enquanto a mais jovem ficou agarrada ao pai.Vi quando Reginaldo dirigiu olhares desaprovadores em relação a conduta da filha;mas ela não via,sonhava em meus braços...Sonhos cândidos ou impuros com aquele que as conhecia desde sempre.
-Venha.Falou a Pandora num tom acima do usual.Ela desfez o abraço e deixou a sala junto com o pequeno grupo.
A rusga entre nós seria questão de tempo. Queria uma delas pra mim só não sabia qual.
Passei a sala de jantar. A mesa posta, com a melhor louça da casa, pra receber o conviva mais ilustre; já não tão assíduo... Minha volta era comemorada naquele jantar suntuoso, embora familiar, como se comemorássemos o regresso de um exilado,alguém muito amado que regressava pros braços dos seus.
-Gostou do jantar?Estava do seu agrado?
-Tudo em sua casa está do meu agrado.
Nívea não possuía malícia,seu coração juvenil ainda não havia acordado pros sentimentos do mundo,não era recatada nem tímida,era apenas simples,sua beleza e modos não careciam de supérfluos;sua pele era negra como as madrugadas tão oposta a manhã celebre e orvalhada que era Pandora.
-Reginaldo,quero casar-me.
-Um homem como você não casa,nunca pendura as chuteiras.
-Suas filhas estão muito bonitas...O rapaz também não está mal,você tem uma bela família.
-De fazer inveja não é?

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Humor arranhado

-Traz o cimento e a brita.
-Que vamos fazer?
-Um reboco.
-Que nem aqueles de cara de mulher?
-Tá me achando com cara de mulher Chico?
-Estou falando da maquiagem delas, aquele negócio que elas põe na cara pra disfarçar a feiúra.
-Ah, a sombra!
-Isso!Às vezes passam tanto... Fica precisando de acabamento.
Uma mulher foi passando perto da obra prima que os dois iriam rebocar: salto alto, roupa justa, brincos de argola, e um excessivo blush...
-Aquela ali é mulher da vida.
-Toda mulher é da vida Francisco.
O outro franziu o cenho espantado.
-Como é isso?
-Venha cá seu tonto. Disse puxando o outro pela manga da camisa. Toda mulher é da vida. Repetiu. E todo homem também.
-Eu é que não sou. Se você é problema seu... Mas eu to fora.
-Jumento!Todos são da vida... Afinal, se não fossemos homens e mulheres da vida, seriamos o quê?Gente da morte?
O Chico ficou resmungando enquanto olhava a mulher sumir na rua.
-Ela era bonita... Pena aquela sombra nas bochechas dela ser tanta...
-Deixe de papo furado e vá pegar o que eu mandei. Já pegou?
-Você hoje tá agitado!
-Estou é com pressa. Tenho gente em casa me esperando.
-Uma mulher da vida?
-Lave a boca pra falar de minha mulher Chico!Disse pegando o companheiro pelo pescoço, quase sufocando-o.
-Mas não foi você que disse...
-Disse sim, e repito, mas disse da mulher dos  outros. Com a minha quero respeito. Se aprume.
Chico ficou lá fazendo a massa... Estava um calor. Apinhou a calça e a camisa.
-Deixa de preguiça e faz logo essa massa pra gente dar continuidade ao trabalho. Nunca vi um ajudante de pedreiro tão mole!Só vai ganhar meio dia de serviço desse jeito e olhe lá.
-Muito bom. Você só manda o tempo todo, não faz nada e depois o preguiçoso sou eu.
-Tá demitido. Se for pra não fazer nada e ficar caçando conversa no serviço, eu faço mais, faço tudo e faço melhor. Apanha tuas tralhas que tu tá fora.

domingo, 28 de agosto de 2011

Adeus!!

A morte transfigurou e empalideceu seu rosto. As linhas suaves tornaram-se graves e carrancudas como uma carranca. Estava assustado e não conseguia sofrer, no entanto diante de seu caixão era quem mais aparentava sofrimento, quem mais chorava... As lágrimas caiam aos borbotões numa vicissitude fria e asquerosa, as pessoas se acercavam de mim, tinham pena, prestavam solidariedade, os mais puros sentimentos...
Aos poucos me vi diante de sua lápide, sozinho; estávamos a sós como eu tanto gostava de estar com ela, já não fazia sentido. Fui embora.
Minha casa estava uma pretoria só, o vestuário era horroroso, um fingimento de dar dó; às vezes sentia como se todos nós estivéssemos fazendo parte de uma orquestra ensaiada de forma perfeita a enganar uns aos outros,eles também não sofriam, eu era o único a perceber isso. Nenhum deles pôde perceber a minha falta de sofrimento, não havia afetação, era um ator perfeito.
Contudo e contraditoriamente ao que vos possa parecer, mesmo sem sofrer de verdade,era eu quem mais sofria,sofria por não sofrer, por ver em mim uma frieza que condenei minha vida inteira; gostaria que as lágrimas fossem verdadeiras, talvez por isso o fingimento fosse tão genuíno, era um desejo real sofrer por ela que me deu tantas alegrias, tantos momentos bons, ora de paz ora de desassossego por que o amor é mesmo assim feito de paz e tormentos, há quem possa dizer que isso é paixão e que aos poucos irá morrer. Ela morreu, os meus sentimentos permanecem, hoje volto a seu túmulo e mais uma vez contemplo a face da morte diante de mim, já não é mais a pedra mortuária que se cerra sobre seu corpo. Não saberia dizer como fiz aquilo: arranquei minha própria alma e deixei ali pra que ficasse com ela... Remorsos das falsas lágrimas derramadas... Tão verdadeiras em sua falsidade, e em seu desejo de sofrimento... Não me pergunte mais nada, não saberia responder.Falta-me a alma...Agora sou somente corpo.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Os Pecados Divinais de Ataulfo

Rabisca, rabisca!Só mais um retoque e estaria pronta, perfeita, divina!Dera uma trabalheira aquele retrato, modelo feia, porém esposa de um figurão, Senador por um dos estados mais importantes da federação.
-Boa tarde excelência, sua esposa e eu temos uma surpresa...
-Não digam que o quadro já está terminado?
-Veja por você mesmo querido.
-E então Senador, mereço ou não o cargo que pleiteio?
Chamando-o ao canto do gabinete segredou-lhe:
-Trabalho de mestre meu rapaz, seja sincero minha senhora é uma formosura, não é?
-Com todo respeito que lhe devo por ser mulher casada e muito bem casada, é sim senhor – engoliu em seco, que mulher feia e desengonçada a senhora Gomes!Mas as feias tem sempre mais qualidades e oferecem menos riscos...Adorava uma feia, tadinha delas;somente um verdadeiro artista pra desvendar-lhes a beleza oculta.
Um apertão firme do Senador Gomes acordou-lhe:
-Então meu caro parece que estás apaixonado por minha mulher, não tolero esse tipo de traição. Será que atrapalho suas conjecturas sobre a obra ou flagro seus olhares devassos?
-Desculpe Senador Gomes, mas o trabalho está entregue. Diante de tal ofensa vejo-me forçado a cortar relações com sua família.
-Que é isso meu rapaz... – Estava desarmado, o pátira demonstrara tanto brio, não tinha palavras pra novas acusações!
A excelentíssima Gomes, (pra quem não sabe mulher de excelência é uma também, por vários motivos, um deles: ter sempre razão. Salvo situações nas quais seja forçoso discordar desta pra concordar com o esposo) até o momento alheia a conversa, aproxima-se do marido, abraçando-o.
-Senhor Ataulfo fiquei muito lisonjeada pela obra, mas sinto acusá-lo de não corresponder a verdade dos fatos: olhe pra mim e olhe pra sua tela...Tão bonita,altiva.
-Ora senhora não queira culpar-me por sua modéstia...
Era uma santa posta num altar magnífico, quanta graça; era mesmo belíssima a sua senhora, prenda digna de reis, e ele era um não era?Quem seria audaz pra dizer o contrário?
Sempre virtuosa madame Gomes baixou os olhos meigos, tomou as mãos do pintor... Sua constatação, quase um clamor, fez eco no gabinete do senado:
-És um santo!
Isso bastou pra iluminar o ciumento Senador. 
Manhã de segunda-feira o Senhor Ataulfo Mendes era cumprimentado entre beijos e abraços saudosos... Enfim saíra a nomeação pra embaixada.
Era mesmo uma santa. Virtuosíssima...       

*pátira: patife

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Aniversário do blog,19 de Agosto,postagem comemorativa.

Peguei algo emprestado da minha maninha hoje...Ele é tão bonito,rosto macio e suave,contornos magníficos,estava simplesmente enlevada pelo som de suas palavras;não sei como ela em sã consciência me emprestou...Se eu gostar juro pra vocês que não irei devolver.
Deitados juntos na cama nos olhávamos longamente como se fossemos velhos conhecidos, naquele instante ele era meu.Degustei com prazer cada centímetro de seu corpo;estar em seus braços era como deitar em nuvens macias,confortáveis;agora eu estava no topo e olhava os mortais com desdém,ninguém jamais poderá saber como eu me senti quando terminamos aquilo;estava embevecida,maravilhada.
Ainda ficamos um tempo nos olhando antes que ela chegasse à porta reclamando seu afeto mais caro, sua porção de céu.
“Está na hora de devolver.” Quando ela disse essas palavras senti que ele ficou gelado em meus braços, tremia e temia nossa precoce separação;
-Vamos venha até aqui, ela já aproveitou o suficiente, aliás já passou da hora dela me entregar você.
Ele teimava em ficar abraçado a mim, apertava-me cada vez mais contra o seu corpo. Éramos um só. Amávamo-nos.
Sem graça, olhos baixos e melancólicos dava adeus ao meu primeiro livro. O primeiro de muitos.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Assombro - Barulho


Benzeu-se. Olhou bem fundo nos olhos do Cristo menino que repousava no altar. Sentia medo. Colocou o véu, ajoelhou-se começando a orar... Seria descoberta a qualquer instante, talvez fosse melhor contar a verdade de uma vez. Levantou os olhos úmidos procurando os de Jesus; foi quando aconteceu algo curioso ou mentiroso, vai-se saber; de qualquer forma contam no sertão e no litoral, no agreste e no meio norte que Cristina erguendo os olhos topou com os do mestre, braços em cruz, feridas abertas, sangrando diante dela; não sentiu medo, sentiu apenas paz se espargindo dentro de si. Em segundos o primogênito de Deus expirou; tudo no ambiente modificara-se, as luzes estavam mais puras e radiosas, pareciam penetrar os objetos purificando-os; a igreja exalava perfumes de rosas, os próprios poros da mulher excretavam perfume, algo indizível, maravilhoso.
-O que está acontecendo aqui?Perguntou-se.
Não houve resposta audível. Apertou as contas do terço entre os dedos como pra confirmar a realidade, o fato dela mesma ser um ser real. As continhas queimavam-lhe os dedos, abrasavam-lhes a alma... A sua porção divino-espiritual debatia-se contra a matéria-corpo numa luta fremente. O errado jamais passa a ser certo ou vice-versa. Será?
Tinha dúvidas.
Os ponteiros marcavam duas e quinze da tarde. Levantou-se e saiu.
Todos olharam aquela mulher envolta em véus. Mistério completo.
-Herege!Traidora!Os gritos perseguiam-na; era uma mulher de imaginação ruidosa; os pensamentos dela pareciam tomar forma e irem de encontro aos dos passantes que começaram por sua vez a acusá-la.
Refugiou-se em casa. Puxou as cortinas pra preservar o ambiente doméstico.
-Cristina o que há aqui?Falou o esposo.
-Uma verdadeira celeuma.
-Tudo isso por causa de ti, de nós?
-Você acha pouco?
-Sossegue esse coração e essa mente. Estamos noutra cidade. Ninguém aqui sabe que não somos casados como ditam "as boas" regras de conduta.
-Estou perdida se nos descobrem. Já pensou na confusão, todos saberem que estamos amasiados?!
Gargalhou de forma gostosa, o que era natural nele.
-Estamos no século 21, meu bem, em que época pensa que estamos?
-O mundo ainda... Começou dizendo quando ele atalhou.
-Estou sem almoço, aliás você está.Vamos pra cozinha,a comida está ótima.
-O que temos?
-Surpresa mocinha... Chegando lá você vê.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Ao Mestre

-Passa a cola.
-Aqui.Colocou na mesinha.
-Está quase pronto;acho que ficará bonito; e você o que me diz?
-Não entendo de arte sou somente um ajudante.
-Ajudante não;aprendiz.
-Que seja!Estou cansado e vou embora.Pegou a mochila e saiu.
Era lavável.Colocou tudo aquilo debaixo da torneira vendo o efeito que produzia,estava ficando limpo
sem perder os atributos iniciais;ficou uma imagem bonita,original,inovadora.
-Não existe originalidade nisso.
-Achei que tinha ido embora.
-E fui,mas decidi voltar,esse horror que você fez,meu Deus,poupe os olhos alheios disto.
Sentei na poltrona mais próxima e fiquei ali observando a aula do aprendiz,parecia um homem experiente,sábio...Falava sobre teorias vanguardistas com muita habilidade,sobre a necessidade de por sentimento e amor no trabalho.Mas eu desconhecia o amor.Ele estava disposto a me ensinar.Tapou os meus olhos,segurou meu braço me conduzindo pela ampla sala.Pode parecer clichê os fatos após isto,contudo aquele jovem mudou a minha vida e minha arte.
-Tire os sapatos.
-Em que isso irá me ajudar?
-Tire os sapatos.Prosseguiu com a ordem.
-Você é louco.
-Tire os sapatos.Já disse.
Obedeci.Ele parecia obstinado.
Percorri toda sala com sua ajuda.O chão estava gelado.
-Sinta o chão.Descreva pra mim.
-Frio.
-Só isso?
Aproveitou-se da minha vulnerabilidade,da minha momentânea falta de visão pra me dar uma pequena aula.Empurrou-me com força.Fui ao chão em segundos.
-Um chão não é somente frio ou duro;uma coisa tem inúmeras possibilidades,elas afagam e machucam como as pessoas e os demais animais.
-Pode ir mais devagar?
Naquele momento avançou sobre mim,pôs-me de pé com uma força extraordinária.
-Está de pé novamente.Disse rasgando  minha roupa.
Naquele momento decidi que não estava mais participando daquilo.Em fúria arranquei o pano dos olhos.Eu estava nu e ele olhava fixamente pra mim.
-Reaja!Vamos!
-Pederasta!
-Não sou isso, não.Você é um péssimo artista,estou somente tentando te ensinar a fazer a sua arte.Bem...Acho que você já sabe, né?
-Desculpe.Mas,é um papel ridículo o que você está fazendo,me expondo e se expondo dessa maneira.
Olhou de forma ainda mais fixa e dura nos meus olhos.
-Em poucos minutos te ensinei a vulnerabilidade,o medo, a raiva,a dor. Coisas verdadeiras.Não dá pra mentir e enganar as pessoas como se elas nada fossem;um trabalho artístico transpira o autor;todos nós já sentimos fome,frio,dor,desesperança,alegrias  e momentos de euforia intensa.O que você cria está inteiramente ligado aquilo que você sente e é.
-Hum.
-Você nunca foi cego,mas por alguns segundos te fiz sentir como um.A sensação de abandono,de exposição.Da mesma forma que não sou um pederasta ou estuprador;porém te proporcionei a sensação de vitima.Tirei de você elementos que estão ao seu dispor diariamente e sequer percebestes...A pintura,a dança.o teatro,os textos a serem escritos estão todos diante de ti,falta apenas alguém que os interprete,que saiba senti-los com as entranhas,com as partes mais profundas do ser.

Naquele momento cada partícula minha amou aquele jovem.Essas foram apenas algumas lições aprendidas;depois daquela primeira aula ele disse que eu estava pronto,pronto pra aprender cada vez mais,as ferramentas estavam todas diante de mim.